sábado, 27 de outubro de 2012

Refletir, criar...

 Foto de Bruno J P Teixeira



Maria J Fortuna

Segurou o pincel com uma das mãos como se pegasse as mãos da própria alma. A outra estava apoiada na prancheta, talvez para ajudar a conter a estranheza que vinha de dentro. Diante da tela, um primeiro movimento de inspiração numa pincelada azul. Enchendo-se de coragem havia dado o primeiro passo rumo ao desconhecido.
Depois daquela primeira pincelada, começou a longa aventura do coração. No azul, o branco se fizera presente, projetando seus fantasmas no movimento das nuvens. Outras cores começaram a nascer nos horizontes da tela. Apertando a bisnaga do cinza, surgiram as nuances dos seus dias de bruma. O Cinza claro e escuro em tons azulados se fez presente, sugerindo um céu de outono. Mas pincelou alguns raios de amarelo e laranja, para quebrar-lhe a nostalgia. Sentiu o rosa daquele momento pedindo-lhe passagem. Tudo aquilo era quase uma sinfonia! E assim a tela foi se enchendo das cores do pôr- do-sol. Por fim, alguns pássaros surgiram na ponta do pincel molhado de branco e voavam pelo espaço do firmamento recém-criado. Sorriu na dúvida de que, sozinha, estava realizando aquela viagem... Mas era verdade. Aquele era um ato tão solitário quanto o ato de nascer, sozinha, na presença do mundo. Mas aquele céu era mãe dos pássaros que não eram solitários, porque voavam juntos na mesma desconhecida direção.
Contemplou sua obra e percebeu quanto era longo o caminho para que beirasse a santa loucura de Van Gogh, a transparência de Renoir, os movimentos dançantes de Degas, a vida borbulhante no colorido de Toulouse Lautrec. Mas sua rota teria que ser única e reconhecida, a cada passo da criação, como eterno ensaio. E isso dependia tão somente dela, do seu suor e do exercício da técnica adquirida com o passar dos anos. Sabia que por diversas vezes erraria o caminho, pois o pincel não conseguia expressar o que realmente vinha de dentro. O mais importante era ser criança em espirito, capaz de transformar-se um dia em elefante, outro em borboleta. E era disso que precisava. A angústia morava no pouco tempo que lhe restava em adquirir a destreza necessária até que sua mão se tornasse leve como pluma, e ela livre por sobre os trilhos.
Embora um sentimento de incompletude tomasse conta do seu ser, não havia dúvida de que os cordões da fantasia haviam-se desabotoados. Sabia que não era tão livre quanto aquelas aves no pôr- do-sol recém-criado colorindo o céu com suas asas, mas aquilo era só um princípio. E uma vez chegando a ele, não haveria retorno. Mesmo que a tela fosse manchada com seus borrões impetuosos, na procura de uma estética na projeção criada, sua alma viria sempre junto dali por diante. Foi o que aconteceu. Ali estava a semente brotada pela transpiração, que revelava que aquele olhar de coisas velhas fora vencido. A semente do novo estava plantada e dali por diante teria que ter coragem e simplicidade.
A terra transpirou, realizando-se em seu destino a partir daquela primeira semente. Foi naquele dia em que a forma saiu da fôrma e as cores do coração.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

A visita do amor


 

 

 

Maria J Fortuna

 

Seu corpo estava prostrado no sono das velhas estrelas quando o amor chegou. Não tinha forma definida.  Chamava-se assim, era o que bastava. Não interessava o corpo que o conduzia. Estava vestido de rosa, mas em seus afagos, ela sentia a presença do vermelho e isso também bastava ao seu corpo de setenta anos. Não era santo como o amor de Jesus, mas era tão humano e carente quanto ela própria. Tão repleto de estigmas quanto aqueles que marcaram seu próprio coração. Não era tão azul como a sinfonia de Chopin, mas tão claro e simples e alegre quanto o trenzinho caipira de Villas Lobo. Tão receptivo ao carinho quanto à sensitiva dos campos.
Chegou assim tão devagar e apalpando como cego, seu corpo entregue ás manias do tempo. Aquela em especial de amassar as folhas, animais e pessoas e torná-las enrugadas, mas deixando um perfume de boas lembranças espraiadas nas mentes cansadas, como refrigério.  O importante é que o amor também tinha corpo e dentro de si mesmo desejava aquele encontro tanto quanto ela própria. Não fosse o medo não teria se ausentado durante tanto tempo... O medo é um polvo transparente que aperta o coração com seus tentáculos impedindo a liberdade do ser no ser.
O amor sondou sua pele com caricia cuidadosa como o contato dos primeiros raios de sol da manhã.  E, aos poucos, foi-se manifestando de forma ousada, como tanto ela desejava e não sabia. Talvez soubesse, mas fechava as portas aos sentidos, num exercício lento e doloroso, achando que dessa forma poderia privar-se do vexame de amar daquela idade. Então seu arfar constante no peito, deixou escapar um monte de borboletas azuis. Sentia-se desejar sendo desejada de forma tão gratuita quanto  criança diante de algodão doce, no primeiro dia de visita ao circo. Tão lúdico aquele momento, tão perfumado quanto os mais saborosos quitutes da vida. E retribuiu todas às caricias do amor.
Sua pele transformou-se no pêssego dos seus primeiros anos. Seus seios tornaram-se cheios como dois frutos sazonados e suculentos, não importando há quanto tempo amadureciam na árvore. Sua respiração acelerava enquanto o calor daquelas mãos amorosas despertavam todos os seus fios de cabelo, seu sexo e os sonhos soterrados na dor do preconceito.  O tempo espreguiçou-se dentro de si mesmo e os relógios pararam. E ela amou o amor que, beijando-lhe a boca, soprou-lhe segredos. Um deles é que, além de atemporal, seu nome em todas as formas de manifestação, é sempre o mesmo: amor! E que ele é uma criança simples e despojada, tendo como única alegria o aconchego, de corpo e alma, daquele que ama. Não importa os machucados do tempo.  E que não deixa marcas dolorosas, só à lembrança de doces prazeres.
Não foi preciso dizer mais nada até que, em risos e gemidos, fundiram- se naquela noite...  E seu corpo, tão cansado, prostrado no sono das estrelas despertou, e a deixou assim: feliz e agradecida. Mesmo depois que o amor foi embora...

 

 

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Para quem mora no Rio de Janeiro

 
 
 
 
 
 

Nise da Silveira


 

 

Na década de 70 foi a primeira vez em que ouvi falar a respeito de Nise da Silveira. Minha amiga atriz e bailarina, Jacqueline Cavalcanti, que já está do outro lado da vida, admirava imensamente essa psiquiatra que foi um marco no tratamento de doenças mentais. Nise mergulhou fundo na alma dos seus pacientes e descobriu tesouros imensuráveis! Muito deles revelaram-se grandes artistas plásticos e a arte terapia ganhou corpo, quando o tratamento era à base de insulina e eletrochoques.
Tenho acanhamento em dizer que trabalhei nove anos na Psiquiatria do PAM – Padre Eustáquio,  em Belo Horizonte e,  pouquíssimas vezes,  Nise foi mencionada pela equipe médica, de enfermagem e serviço social, como exemplo de mulher revolucionária e pioneira no tratamento de pacientes, muito deles esquizofrênicos. Poucas vezes ouvi falar sobre o Museu do Inconsciente, onde suas obras estão expostas aqui no Rio de Janeiro.
Mas artistas são artistas e, através do fio luminoso da sensibilidade,  descobrem as expressões da alma e tem um respeito,  quase religioso, por figuras como Emygdio de Barros e Raphael Domingues como enorme gratidão por essa mulher extraordinária, que humanizou os manicômios onde trabalhou. Os artistas se reconhecem.
 
 
 Um olhar atento e carinhoso enquanto seu paciente trabalha
 

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Emydgio de Barros e Raphael Domingues


 

Visitei no Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro, uma fantástica  exposição que reúne cem obras de dois grandes artistas:  Raphael Domingues (1912-1979) desenhos e Emygdio de Barros (1895-1986) pintura. Ambos diagnosticados como portadores de esquizofrenia. A exposição  homenageou a memória da psiquiatra Nise da Silveira que criou o ateliê de artes do Setor de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação, mantido no Centro Psiquiátrico Nacional hoje Instituto Municipal, lutou bravamente contra os  procedimentos agressivos aplicados nos anos 1940 em doentes mentais, como lobotomia, choque elétrico e injeções de insulina.
Em seu ensaio sobre a obra de Emygdio de Barros, o curador Rodrigo Naves, após examinar as obra do pintor, considera alguma semelhança em relação às obras de Matisse, Munch.   “Sua formação num contexto social hostil paradoxalmente o levou a buscar harmonia por meio de uma intensidade cromática, não ilusionista, como a dos expressionistas.” Naves cita como exemplo o contraste entre a paz interior de um homem trabalhando em seu ateliê e a paisagem em movimento desestabilizador vista através da janela numa de suas telas.
 
 

sábado, 13 de outubro de 2012

Ser criança

 
                                                                                                                                     Maria J Fortuna
Costumo me debruçar na janela da vida e observar as pessoas que passam pelas ruas da cidade. Algumas trazem expressão de cansaço. Outras a sisudez de quem topou com muitas pedras e se empedrou. Ainda em outras, um ar divertido de quem, no bom humor, supera as dificuldades. E os que estão preocupados com algum alfinete lhe espetando a alma. Independente da idade, raça, credo ou condição social, indago-me se todas aquelas pessoas brincaram quando eram crianças. Algumas cresceram na roça, em sítios ou fazendas no interior do Brasil. Tiveram oportunidade de conhecer de perto os segredos da terra, dos animais e das plantas. No íntimo contato com o sol e a lua. Brincaram de maré, amarelinha, cancão. Todas as três palavras querem dizer a mesma coisa, variando conforme a região em que a criança nasce. Ou seja, pularam nos quadrados desenhados no chão com pedra, numa perna só, como Saci-Pererê, para pegar uma casca de banana. Será que a brincadeira ainda existe?
Outros crescem em favelas apertadas, com cheiro de pobreza, dormindo amontoados com pais e irmãos e comeram, sobretudo, muita massa, para matar a fome, por isso na maioria são gordinhos. Mas tiveram uma vista bonita da cidade. Imagino que apesar de todo aperto, foram crianças que brincaram de bola e empinaram papagaios na laje dos barracos. Tem os que cresceram em apartamentos, engaiolados em prédios, mas que ainda conseguiram brincar na garagem sob os protestos do ndico ou do funcionário que toma conta dos carros. Comemoraram aniversário no salão de festas.
Outros, que não costumam frequentar ruas movimentadas, cresceram em casarões em bairro chique e, além de terem bastante espaço para brincar, ainda frequentam clubes selecionados onde menino pobre, nem pensar, entram.
Ainda temos as crianças que dormem nas ruas, embaixo das marquises dos prédios, cheirando cola, e estão magros e verdes de desnutrição e veneno. Quando tem uma fonte em praça publica, costumam se atirar lá, e, brincando com água alegremente, esquecem um pouco da maltrapilha miséria que os acalenta com seus braços perversos. É hora em que penso nos Bancos... Itaú, Bradesco, Santander... Daí por diante.
E as pessoas continuam passando e eu observando... Como figurantes de novelas. Como se a gente e o mundo todo fôssemos virtuais.
Como não abrir espaço dentro do coração para a grande utopia do amor fraterno? Trazer todo mundo para a escola, independente de raça, religião ou condição social, num grande encontro, onde o que interessa é varrer a ignorância e aprender a conviver, brincar e ser feliz com o outro nessa vida! Ver todos partilhando das mesmas salas de aula, e ter recreio na convivência com todos, no direito a ser criança, aprender, brincar e ser feliz. Imaginar a alegria de Darcy Ribeiro e Cristovam Buarque! Todos cuidando, com consciência, do planeta, que está doente, e ao mesmo tempo, curando a grande ferida da desigualdade social.
Assim, lúcida, lúdica e alegre, em dado momento, a criança que fomos emerge de dentro de nós quando o amor fraterno surpreende, aquecendo, inesperadamente, nossos velhos corações. Podemos dizer, nesse momento, que essa brisa amorosa refrigera de tal forma a alma que não teremos mais 50, 60, 70, 80... Até 100 anos de idade nesse momento. Tornamo-nos atemporais! Mesmo ao ritmo de um coração cansado, a infância trazida nas asas do amor, às vezes de muito longe, restaura o eterno da alma, porque traz esperança!

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Sedenta de deserto

  Maria J Fortuna
Confesso que estou cansada de assistir a noticiários. Prefiro ler o jornal que tenho em casa por assinatura. Pelo menos as notícias de assaltos, mortes e roubos, não ficam me assombrando o dia inteiro, como se eu fosse mais que culpada do que está acontecendo no Brasil e no mundo. Doe na alma saber das guerras que destroçam o ser humano em sua dignidade. Que deixa órfãs tantas crianças num massacre inteiramente irracional! A disputa por territórios, que na realidade não são de ninguém, mas de todos deste planeta sofrido, que ameaça deixar a gente com fome e com sede, à medida que o agredimos com o desrespeito à própria vida. A tola sede de poder que nos leva à miséria humana. Estou cansada das milenares guerras santas, que nada tem a ver com Amor e Paz. Massacres históricos em nome do deus vingativo do “olho por olho, dente por dente”.
As noticias do jornal não fazem barulho externo e posso escolher se quero ou não me inteirar delas. Melhor ler uma boa crônica, como a do Veríssimo, por exemplo, de quem já digeriu a notícia e passa para o leitor em forma de um bom comentário. Ou saber dos espetáculos que estão por aí nos cinemas ou teatros da cidade. Bom assim. Podemos ir à cata de poesia, que certamente não mora dentro desses noticiários ou buscá-la em exposições de arte. Tem muita poesia nas paisagens dos parques e praias do Rio de Janeiro. Além das palestras e seminários interessantes sobre diversos assuntos, que estão sempre acontecendo por ai nos Centros Culturais, museus e outros locais. Bom para descansar a alma.
Outra forma de repousar interessante, que podemos propor a nós mesmos é um mergulho em nosso  deserto interior. Não é sem batalha que conseguimos isso. Mas quando conseguimos, esse hábito restaura-nos de uma forma incomparável! Fechando os olhos, numa postura adequada, estamos prontos para o mergulho. Apenas prestar atenção no respirar e nas batidas do coração. Só isso.
Jean Yves Leloup fala-nos desse momento prazeroso quando entramos no deserto de nós mesmos: “É uma espera que não guarda, mas uma espera não fechada àquilo que vem.”. Complementando as palavras de Leloup, lembro-me de Antoine Saint Exúpèrry com seu Pequeno Príncipe, que diz que “o que torna o deserto belo é porque esconde um poço que ninguém vê”... É o que importa.

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Sou alguem preocupado em crescer.

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