Minha Cidade
Maria J Fortuna
A cidade da gente é aquela
que tem um cheiro especial, luminosidade só dela, clima que nos envolve desde
os mais remotos anos e permanece na memória de cada célula. Assim sendo, dentro
do meu coração está, linda e inteira, São Luís do Maranhão, uma doce Ilha no Nordeste
do Brasil e Terra que me viu nascer!
A mais significativa
lembrança da minha infância é o quintal do sobrado, onde comecei a desenrolar o
fio de minha vida – o casarão de azulejos azuis que possuía mirante e porão,
como muitas das antigas construções maranhenses. A cadeira de embalo, onde me
deitava ao colo do meu avô, olhando as árvores que habitavam o grande quintal e
sentindo o perfume das goiabas que caiam na sombra de suas copas cheirosas. O
barulhinho do córrego, as margaridas e açucenas, compunham meu mundo encantado!
Assim como o alento do sol e os mistérios das chuvas. No azul do céu meu avô
apontava nuvens, chamando-as de urso, girafa, elefante e ainda havia o canto
dos passarinhos, de modo especial do bem-te-vi, sabiá e alguns canários. Pombos
e pardais gostavam de pousar nas telhas da casa. Em dias especiais o céu se
enchia de carneirinhos... então meu avô desenrolava as histórias que moravam em
sua alma bondosa. Era como se abrisse o peito, donde ecoava sua voz grave, e de
lá saísse voando um panapaná* de borboletas azuis! Algumas, aos três anos de
idade, eu não compreendi muito bem, mas eram como se fossem pétalas de flor
retiradas uma a uma, até chegar no pistilo redondo, que esparramava seu pólen e
fecundava mais e mais histórias...
Lá pelas tantas horas da
manhã, recendia o cheiro dos pratos gostosos vindos da cozinha, onde eram
preparados os mais saborosos quitutes como: arroz de cuxá**(mistura de
gergelim, farinha seca e camarão seco e pimenta de cheiro). O ingrediente especial
- a vinagreira – hortaliça africana, muito comum no Maranhão, dá o toque
especial ao prato, ou arroz de jaçanã, uma ave nativa feita garça. A fritada de
bobó de camarão e o cozido, não podiam faltar, entre outros pratos típicos da
Ilha de clima tropical, quente e úmido. Enfim, abundavam frutos do mar no
cardápio.
Lá pela tardinha, eu, minha
irmã e a empregada da casa, íamos à Beira Mar, ver os navios que ancoravam
distantes, por não haver, naqueles tempos, porto na Ilha. Havia tarde em que a
gente ouvia música partindo do navio, o que estimulava nossa fantasia, de que
poderia estar havendo algum baile. Ao pôr do sol as águas do mar dançavam,
refletindo os últimos raios de sol. O inconfundível cheiro de maresia
tornava-se mais forte à medida que ia escurecendo. E o mar ficava escuro,
batendo na muralha de pedra, quando não
havia lua, aumentando seu mistério. Em outros pontos da Ilha, os pescadores
estavam chegando de longa pesca, com camarão, peixe pedra, caranguejo e outros
frutos do mar. Ali, conforme a maré, a gente conseguia compra-los fresquinhos.
Às seis horas da tarde, o perfume de rosas, jasmins e incenso, anunciando a
hora do Ângelus. As crianças partiam para o banho. Hora de receber o pai que
chegava cansado da labuta diária. O jantar era servido. A empregada da casa
tratava de arrumar a cozinha depressa, para finalmente descansar, contando
historinhas de fantasmas e curupiras***para as crianças da família. Eram de
arrepiar os cabelos! Depois cada um ****armava sua rede e o sono chegava bem
cedo.
*Panapaná: coletivo de borboleta na linguagem indígena.
**Arroz de cuxá: um que pode ser considerado símbolo da
culinária maranhense. Seu preparo mistura ingredientes como camarão seco, cuxá
(chamado também de azedinha, quiabo azedo e vinagreira) e gergelim.
Vinagreira: hortaliça de origem agricana, com sabor
acre, muito comum no Maranhão.
***Curupira – Ser fantástico que, segundo a crença
popular, habita as florestas e é o protetor das plantas e dos animais. Referido
desde o século XVI, o curupira é descrito com a estatura de um menino com os
calcanhares para frente: suas pegadas enganam os caçadores e seringueiros, que
se perdem nas florestas. O curupira também faz as pessoas se perderem imitando
gritos humanos.
****Armar a rede: abrir a rede que fica pendurada no
quarto dos solteiros, para dormir.
Quando comecei a frequentar a escola, fiquei
sabendo mais a respeito da minha Terra Natal tão cheia de poesia! Ela foi habitada por índios Tupinambás e fica
entre a baía de São Marcos e São José de Ribamar, no Atlântico Sul. Nesta
última, costumávamos passar as férias
escolares. Em 1612 chegaram os
franceses e o nome São Luís foi colocado em homenagem ao Louis IX, rei de
França. É a única capital brasileira colonizada por franceses. Por isso temos
algumas palavras derivadas do Francês.
Esteve também sob o controle holandês 1641 a 1644, quando a economia
tinha por base a exportação de cana de açúcar, tabaco e cacau. Por volta de
1860 exportava algodão para a Inglaterra. Depois vieram os portugueses que
sempre brigaram pela posse daquela Terra e foram responsáveis por sua
edificação. Hoje em dia a pecuária, agricultura e pesca artesanal fazem parte
da economia do Estado maranhense. Além de ter aumentado a produção de soja,
arroz e milho, a mandioca é muito cultivada.
Quando estive na cidade do
Porto, Portugal, contemplei os azulejos da minha Terra nos velhos casarões
daquela cidade! Talvez seja pela predominância do azul, ton sur ton, que até hoje a tenho como cor predileta para pintura
de casas e edifícios. Um dia, já na década de 90, quando fui à casa de uma
família em Belo Horizonte, Minas Gerais, lamentei profundamente ver os azulejos
de São Luís, decorando a copa. Por isso São Luís corre o risco de perder o título
de “Cidade do Azulejos”, como é conhecida por muita gente. As demolições hoje
em dia são grandes e de muitos casarões foram retirados azulejos originais.
A Ilha é abastecida pelo
rio Itapecuru. Existem ainda os rios Bacanga, cujo parque se encontra
preservado até hoje e o rio Anil. Quando íamos para nosso sítio, um pouco
afastado da Capital, eu me deliciava ao ouvir as canções das lavadeiras de
busto nu, batendo roupa ensaboada nas pedras e taboas de madeira, a beira das
águas que corriam por aquelas terras. O banho de rio, por causa do perigo de
afogamento, era supervisionado por nossas mães. Quase sempre perdíamos uma peça
da roupinha branca com que nadávamos ali, quando a correnteza se tornava mais
forte. Quando comecei a ler Monteiro Lobato, tinha medo de que aparecesse por
lá um peixinho atrevido que se apaixonasse por mim e me pedisse em casamento.
Como aconteceu com a menina Narizinho, uma de suas principais personagens. Não
era ideia mito boa ser carregada por aquelas águas escuras e frias, até o
castelo do Príncipe que morava em suas profundezas, pensava eu. Do arrepio das
águas geladas ao medo do peixe real, havia arrepios e tremores, até que minha
mãe me enrolasse numa toalha macia e felpuda.
No sítio havia frutas
maravilhosas, típicas da Mate Atlântica: murici, bacuri, abricó, jacama e
outras. Era como se os deuses, brincando de guardar segredo, tivessem soprado
delicias dentro de cada uma delas! No pós-guerra mundial, onde a recessão foi
grande, meu pai ficou desempregado e, graças aos doces que minha mãe fazia
daqueles frutos maravilhosos, sobrevivemos. Ela os vendia aos aliados que
desembarcavam no estratégico aeroporto de São Luís. Dentro de um velho tanque emborcado, de
azulejos danificados, eu ficava brincando de boneca com a filha da caseira,
ouvindo os babaçus caírem nas águas do poço.
***** - A Mãe D`Água está dormindo...
falava a menina, falava a menina, e eu torcia para que o barulho dos babaçus
não a acordasse a mulher peixe encantada**** Sabia que, além dos poços, ela
costumava frequentar a Lagoa Janssen, com seis mil metros quadrados de área e
diversos manguezais. Toda Mãe D´Água gosta de poços e lagos, dizia minha
companheira de folguedos.
*****A Mãe d´Água -
Trata-se de uma figura com mistura de mulher com peixe. No rio Itapecuru, ela
aparece ás suas margens. Carrega crianças deixadas pelas mães na beirada.
Penteia seus longos cabelos com pente de ouro recoberto de pedras preciosas que
enlaçam os rapazes que são levados para o fundo dos rios e nunca mais voltam.
Aprendi que no século
XVIII, fase de ouro da economia maranhense, São Luís viveu grande efervescência
cultural. Era a cidade brasileira que
mais se relacionava com as capitais europeias e com outras capitais do
Brasil. A literatura e a poesia
germinaram com grandes escritores e poetas como Graça Aranha, Raimundo Correia, Humberto de Campos, Coelho Neto,
Gonçalves Dias Mais recentemente tivemos Josué Montello e Ferrreira Goulart, dentre outros. Não é à toa que
São Luís recebeu o epíteto de Ilha do Amor, por tantos famosos da literatura
que a louvaram em prosa e verso. Nesta Capital considerada na época de Atenas
Brasileira, foi editada a primeira gramática portuguesa no Brasil. Mesmo no
século XX estava eu em casa do meu avô, com grande laço de fita na cabeça,
declamando poesias em cima do piano. Eram os saraus que minha família
proporcionava aos intelectuais frequentadores do sobrado. Ali nasceu um jornal
literário famoso no Maranhão – O Ateneu.
Em 1997 quando a cidade foi
tombada pela UNESCO, considerada Patrimônio Cultural da Humanidade, eu tinha
vindo para o Rio de Janeiro e depois para Minas Gerais. Além de ter deixado toda aquela magia, tinha
saudades das festas da Ilha. Particularmente o Bumba meu boi, tradição folclórica afro indígena, que aflora no mês
de junho. Junto com as festas juninas em louvor a Santo Antônio e São João.
Estas festas iluminam São Luís, por várias noites! Minha mãe costumava compor
pequenas canções para que meus dois irmãos participassem do evento. Eu me
lembro de um pedacinho de uma delas: “Boi
mimoso do curral, quem te ensinou a dançar, foi no palácio da rainha, onde o
rei foi passear...! Na minha memória poética ainda sonho com o boi vestido
de negro com miçangas prateadas e douradas, cheio de esvoaçantes fitas
coloridas nos chifres, dançando ao clarão da lua. Os homens abriam a roda
cercando o boi que dançava girando. Alguns eram homens rudes, bêbados de
tiquira******, que ficavam alegres com suas fantasias multicores, do mesmo
tecido e enfeite da roupa do boi. Outros faziam parte da festa usando penas de
índio. Eram enormes os cocares! *******Dançavam até de madrugada ao redor do
boi, que, através dos movimentos do homem que o representava, fazia evoluções
em círculo, enquanto alguém contava sua estória. Dependendo do lugar, iluminado
por uma fogueira. Era o tempo em que a gente ainda contava as estrelas perdendo
a conta...
******Tiquila: bebida que surgiu da tradição indígena de
aproveitar a mandioca para quase tudo, inclusive para fazer agua ardente
*******Cocares: Um leque de pena que os índios colocam em
suas cabeças. As disposições das cores do cocar não são aleatórias. Além de
bonito, ele indica a posição do chefe dentro do grupo e simboliza a própria
ordenação da vida em uma aldeia Kaiapó.
Candomblé: religião afro-brasileira.
Assombração: Alma do outro mundo
Em julho, durante as férias
escolares, nossa família partia para São José de Ribamar. Lá eu esperava
ansiosa pela Festa do Divino em louvor ao Espírito Santo, culto marcado pelo sincretismo
religioso. A tradição foi trazida pelos portugueses e recebeu contribuição de
culturas indígenas e africanas. Começa na Igreja Católica e termina no Terreiro
de Candomblé. Eu adorava ver as crianças vestidas de Imperador e Imperatriz,
herança portuguesa, com a imagem da pomba branca na almofada de veludo com a
figura do Espirito Santo bordada na bandeira branca e vermelha. Há partilha de
alimentos durante o evento. A criançada fartava-se de bolos e doces com glacê
colorido e guaraná Jesus, uma refrigerante cor de rosa que só tem no Maranhão.
Pela fé do seu povo cuja a etnia vem do branco (em sua maioria portuguesa)
índio (povo nativo) e negro (que veio da África para ser escravo), não conheço
povo mais messiânico do que o maranhense! Quanto ás festas profanas o carnaval
era a mais famosa na Ilha. Havia muita alegria pelas ruelas e ladeiras
estreitas da cidade, durante aquela festa! Muitos blocos de rua e alegria nos
clubes! As crianças tinham medo de uma figura típica do carnaval maranhense – o
fofão! Eram foliões com macacões estampados e fofados, com máscaras horrendas,
grunhindo sons igualmente horríveis! Passavam o carnaval pulando, gemendo e se
divertindo com o medo dos pequenos. Pareciam assombrações! Quantas vezes,
quando menina, eu tinha pesadelos com os fofões! Lembram palhaços da Comédia
Del Arte. Essa tradição é bem forte no Maranhão, onde os blocos populares se
misturam aos brincantes e ás bandinhas tradicionais. Fiquei sabendo que os
carnavalescos fofões estão sendo proibidos atualmente no carnaval maranhense, o
que vai descaracterizar bastante a tradição desta festa na cidade.
São Luiz era muito católico em meus
tempos de menina! As Igrejas coloniais superlotadas para as Missas de domingo.
Até hoje gosto de entrar na Igreja lembrando o perfume das angélicas misturado
ao incenso do altar-mor! Ainda ouço a
voz do padre, rezado em latim, ecoando nas encruzilhadas do meu passado. Durante a Missa ou Adoração ao Santíssimo a
magia dos santos me deixava completamente embriagada de misticismo! Lembro-me
devota, com a cabeça coberta por um véu branco, acompanhando os meus pais nas
procissões. Ou no meio das meninas vestidas de anjo. Não tinha procissão sem anjo. Minha mãe de
matilha preta, dedilhando o terço e meu pai segurando uma vela, todo de branco
em seu terno de linho. Durante o Natal havia a Pastoral onde as crianças
vestidas de roupas típicas de diversos países, em par, adoravam Jesus Menino. O
sincretismo religioso estava sempre presente. Havia grandes “Terreiros” em que
nossa empregada cabocla, no meio da noite ou para a madrugada, se unia em
surdina, aos irmãos do Tambor de Mina e ao Tambor de Crioula, religião
afro-brasileira. O Maranhão foi importante núcleo de atração de mão de obra
africana, sobretudo durante 1750 a 1850. No Terreiro, as pessoas entravam em
transe e possessão. Diziam que elas estavam “atuadas”... o que dá na mesma. Certo
dia implorei aquela moça que me levasse com ela para a festa do Tambor, no que
ela concordou desde que eu não dissesse a minha mãe. Pude então contemplar de perto, com os olhos
cheios de surpresa e encantamento, a dança daquelas mulheres com saia de chita
rodada, cantando misteriosas cantigas numa língua que eu não compreendia,
girando ao som das batidas dos tambores tocados pelos homens. Tudo aquilo
acelerava meu coração infantil, no meio de uma clareira no mato. Era uma
experiência fascinante! Guardo com carinho, uma bolsinha de fibra de buriti até
hoje usada para produzir peças artesanais como tapetes e chinelos. Assim como o
Tambor de Mina, no Tambor de Criola as pessoas também se reúnem em círculos que
chamam de Terreiros, e é de origem afro indígena, em homenagem ao santo negro
São Benedito, muito venerado pelos católicos e umbandistas maranhenses. O toque
pitoresco é que as mulheres, saias rodadas e torços na cabeças, cumprimentam
umas ás outras pela “umbigada”. Quero dizer, batem com a barriga, na que está
no centro da roda, convidando-a para dançar. Assim por diante. Essas são doces
lembranças...
Ah! São Luís! São Luís!
Tive que deixá-la ainda menina em botão, mas quando retornei há uns dez anos
atrás, me vi envolta pela mesma atmosfera de sonho que me viu crescer até os
oito anos de idade. Lá estão as palmeiras, ladeiras e ruas com nome pitoresco
como: rua das Flores, dos Enforcados, do Alecrim, da Alegria, da Saudade....
Creio que fruto de um povo que vive em nostalgia romântica e é profundamente
sonhador e poético. Como diz o grande poeta maranhense Gonçalves Dias:
Em cismar sozinho, á noite,
Mais prazer eu encontro lá
Minha Terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá
Não permita Deus que eu
morra,
Sem que eu volte para lá
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Por mais que eu tenha
trilhado outros caminhos neste imenso Brasil, jamais a esquecerei, tão impressa
se encontra em minha alma! Sempre a reconhecerei! Basta recordar o cheiro e o
sabor dos alimentos, o colorido da paisagem, a chuva de hora marcada, o sotaque
tão familiar e, sobretudo, o toque afetivo dos conterrâneos!