Maria J Fortuna
Após um dia não menos difícil que os outros, a moça tentou conciliar o sono... Estava muito cansada... Não era nada fácil tentar colocar a cabeça em ordem... Havia rezado para que, naquela noite, a poesia a deixasse dormir tranquila, sem incessantes apelos para que escrevesse tudo que ela lhe ditasse. Havia noites que aquilo acontecia... Mesmo quando estava com sono e exausta! Esqueceria as palavras insistentes que lhe chegavam aos borbotões, principalmente quando tentava conciliar o sono, se não as anotasse... Seria uma pena... Era uma luta conseguir desvencilhar-se delas. Inoportunas mensagens para àquela hora da noite, apesar da delicada nitidez do seu toque. No silêncio noturno, as dores são maiores, a nostalgia da beleza cresce, e os versos proliferam. Quanto mais aridez, mais poesia! Era quase impossível levantar da cama para anotar as frases, mas não iria se perdoar se não o fizesse.
No início elas pareciam sem sentido, até que iam tomando forma... Se apenas cochilasse, esqueceria a construção daqueles versos que lhe brotavam não sabia de onde, e ela tinha certeza de esqueceria a pequena frase inicial. Ao consertá-las, teriam outras cores, outra respiração. Não seria a mesma coisa. Vinham de onde sua existência se expressava na essência e de onde havia amor teimoso e dor sufocada.
Muito sonolenta, acendeu a luz e procurou a caneta na mesa de cabeceira. Sentada na cama, rascunhou num papel manchado de chá tomado na noite anterior, uma frase que veio de supetão:
- Despenteou os cabelos no cinza do tempo...
Pedindo a Deus que não lhe fosse sugerido nenhum outro verso, deitou-se na cama, aborrecida, buscando embarque no sono... Pensou: - Afinal, como em dias tão nebulosos num planeta ameaçado pela poluição e pela guerra na corrida armamentista, e que cultiva preconceito e radicaliza regras distorcidas pelas más interpretações dos livros sagrados, o coração me acorda para anotar essas mensagens? Não é contraditório? Ou estou completamente fora dessa realidade ou me autopunindo em me fazer perder o sono. Ou estou psicografando? Não. Parece que os versos vêm de mais fundo... Com sono. Isso mais parece vinho sem festa ou sol com chuva... Mas sei que é precioso...
Deitou-se e mais outra frase chega célere e lhe exige atenção. Novamente se levanta, acende a luz maior do quarto com o coração aos pulos, e escreve:
- O néctar das flores alimenta os corações inocentes...
Já eram duas horas da madrugada e nada de dormir. Dia seguinte teria que trabalhar, ir ao Banco pagar contas, brigar na reunião do Condomínio por causa do aumento, marcar médico para a mãe, comprar remédios para a mesma... Precisava dormir. Mas a Poesia não deixava... Jurou alimentar o pensamento com a memória dos bons momentos de suas férias passadas. Rezar não adiantava. Deus tem parte nisso, pensou. Apesar de que o erotismo também lhe aparecia em forma de frases... Mas o que teria Deus contra o erótico se Ele parece ter criado o mundo num grande e divino orgasmo? Toda criação vem desse tônus vital! O jeito era deitar mais uma vez e ligar o rádio. Músicas ou entrevistas, noticiários, alguma coisa que expulsasse o intrometido tempo poético que bem poderia surgir a qualquer momento.
Apagou a luz mais uma vez e, quando abraçou o travesseiro, nova frase chegou sutil, aparentemente sem fazer barulho, mas ressoou tão forte dentro dela que pela terceira vez a moça se levanta para anotar:
- No pântano da guerra o ouro brilhou como estrela cadente...
O dia estava quase amanhecendo...