quarta-feira, 2 de julho de 2008

O trapezista e o palhaço



Maria J Fortuna


Eu estava realmente perplexa quando, pela primeira vez, aos sete anos de idade fui ao circo.
As luzes se haviam apagado. Mas um grande facho iluminou o picadeiro. Um belo homem vestido de azul prateado, com seu corpo inteiramente musculoso e fascinante, segurou o bastão do trapézio com postura de nobreza. Ele era inacreditavelmente enorme em meus olhos. Lá encima o céu estrelado de lona azul, realçava o momento.
Na minha cabecinha aquele cenário de sonho...
O homem recolheu o sorriso. Seu rosto agora era grave e concentrado. A musica da pequena orquestra mambembe executou uma valsa suave...
Meu coração flutuava como pena!...
Então ele passou um pó branco em suas mãos enormes. Segurou o bastão do trapézio, desta vez com muita firmeza, e seu corpo se ergueu na ponta dos pés. Alçou então um vôo magnífico para cá e para lá!
A música o embalava e fazia dançar minhas fantasias de criança
Num segundo desviou de um trapézio para o outro. Colocou-se de cabeça para baixo sustentado pelas pernas dobradas no bastão. Para minha surpresa, vi que ele aguardava outra figura a quem iria aparar um salto, com suas mãos fortes. De repente a figura apareceu.
Imaginem minha surpresa! Dose dupla de homens corajosos! Eu estava sob encantamento...
Então o homem repetiu o gesto do primeiro a se apresentar. Alçou vôo. Deu uma pirueta no ar, como pássaros caçando peixes em alto mar. Caiu nas mãos fortes do homem de cabeça para baixo numa sincronia tão bela como quando acontece algo de bom para a gente e o coração reconhece.
Puxa, pensava eu. Por um triz! Se o outro homem não segura... Se chega adiantado ou tarde por segundo... Todo o meu ser em suspense estava sincronizado com o compasso do bailado daqueles homens voadores.
Agora a pirueta mais arriscada. Os tambores começaram a anunciar em batidas crescentes
Eu tremia toda naquele momento...
O homem-pássaro segurou o bastão do trapézio e jogou-se no ar. Deu duas voltas ali, no alto, no meio do picadeiro sem rede. Lá encima virando-se no ar, procurou as mãos que costumava ampará-lo. E num golpe só foi seguro pelo companheiro.
Foi um alivio... Eu estava emocionada e meus olhinhos se encheram de lágrimas. O trapezista tornou-se a referencia de homem forte e corajoso para mim. A melhor expressão do masculino em minha vida de menina.
Qualquer erro, qualquer dissincronicidade, poderia ter sido fatal, pensei. Será que o circo não tem dinheiro para comprar rede para eles... Ou gostam de se arriscar tanto assim porque precisam muito de dinheiro? O sentimento de compaixão tomou conta de mim.
Os trapezistas desceram e vieram cumprimentar o público. Como eram garbosos! Muitos pares de olhos que haviam contemplado aquele número arriscado agora brilhavam. Uma chuva de palmas eclodiu na acústica tão precária do velho circo.
Eu me esforçava para bater palma proporcional ao merecimento deles. Afinal a gente precisava compensá-los por terem executado uma façanha tão incrivelmente arriscada! Minhas mãozinhas ficaram vermelhas e doloridas de tanto que eu aplaudia! Experimentava de tudo: fascinação, apreensão e alivio! Minha preocupação agora era com o próximo espetáculo. A grande empatia que eu possuía com aquelas pessoas do circo mambembe e o instinto maternal de proteção era inevitável! Eu daria conta de assistir outra vez?
Bem, logo em seguida, surgiram palhaços risonhos e brincalhões, com suas caras pintadas. Davam cambalhotas, caiam, esbarravam uns nos outros, quebravam pratos, subiam uns nos outros. Mas eu ainda estava sob o impacto do numero anterior. Não achava nenhuma graça. Pensava que por baixo de suas caras pintadas, todos eles eram tristes.
Eu continuava pensando e sentindo... Estes homens também vão repetir estas palhaçadas no próximo espetáculo do dia seguinte. E no outro e no outro... Será que conseguirão a mesma façanha todos os dias? Pareceu-me extremamente difícil. Mas, o que seria melhor no circo: ser trapezista ou ser palhaço?
Logo os palhaços se retiraram do picadeiro para começar o número do domador. Este não parecia correr muito risco porque o leão parecia velho e cansado. Então desloquei minha compaixão para o animal. Bem, ai já é outra historia
Esta experiência circense foi um marco em minha vida. Porque a pergunta ficou: o que seria mais difícil? A aventura dos homens voadores sem rede ou o esforço dos outros com cara pintada para fazer o publico rir todos os dias? Porque eu sentia que aqueles homens faziam esforço quando ambos - trapezista e palhaço – executam suas tarefas por prazer?
Anos mais tarde, quando virei gente grande, sempre diante de uma situação de risco noto que tem hora que a gente é trapezista; outro palhaço.
O medo de cair está presente em toda ação que envolve publico. Percebi também que quando nos expomos à situação de risco, não há muito espaço para o medo que sentimos – é caminhar ou ficar paralisado para sempre. O perigo faz parte do nosso dia a dia e a vida é um grande picadeiro.
Há que respeitar estas duas personagens sagradas – o trapezista nos riscos e o palhaço em situações absurdas quando nos vemos as voltas com o ridículo. Como é importante conhecer a dimensão de nossas possibilidades e ter direito de pintar o rosto para esconder o próprio ser quando procura proteção... Esta é uma forma de distrair o medo de cair na frente de todo mundo, ficar velho e morrer.
Sem dúvida aquela tarde assisti ao espetáculo mais importante de minha vida!

2 comentários:

norália disse...

Belíssima crônica. A vida é um picadeiro: ora nos faz ser palhaço, ora nos faz ser trapezista. Ótimas comparações.
Parabéns.
Norália

Miriam de Sales disse...

Ah,Maria,o fascínio do circo!Também fui vidrada neles ,ia com meu pai ver o Circo Garcia e Thiani,todos de outrora,isso é,do meu tempo.
Adorei vir aqui e ler-te. Prometo voltar. Abraços

Quem sou eu

Minha foto
Sou alguem preocupado em crescer.

Arquivo do blog

Páginas

Postagens populares