sábado, 28 de junho de 2008

a chupeta



Maria J Fortuna

- Quero meu pipo, gritava a criança no colo do irmão mais velho.
- A barata fez cocô nele todo, que pena... Olha!
O menino grande apontava para o objeto encima da geladeira.
Pipo é nome de chupeta no nordeste. Especificamente no Maranhão
- Pega ele! Gritava a criança aumentando volume de choro
- Assim mesmo, cheio de cocô de barata?
- Não! Não quero, gritava mais alto, a menina em desespero decepcionada com o que via.
- Então deixa o pipo ai, falava o irmão mais velho
- Mas eu quero! Insistia a menina
- Cheio de cocô de barata?
- Não quero não! Soluçava bem alto a criança
Já estava roxa a pequena de tanto chorar e a vozinha já rouca. Até que começou a ficar com sono e se rendeu a ele, exausta.
Ultimamente aquela cena era cotidiana. Hora de largar a chupeta. A mãe havia pingado cera de vela naquela borracha macia.
E quando a repugnância venceu a vontade mastigar a chupeta na boca uma forte anorexia abateu a menina. Às vezes comia arroz com manteiga. Era só. A enurese também se manifestou. Passava as noites dormindo em rede com uma enorme bacia embaixo para aparar xixi noturno. A menina às vezes chegava a sentir a aquela aguinha morna saindo dela. Depois ficava muito frio. Não havia Papai Noel quer fizesse ela parar de urinar na rede. Ela foi apelidada pelos irmãos de Maria Mijona
Foram momentos dramáticos aqueles! Mas o que é um pequeno objeto de satisfação oral para uma criança? Por que retirar daquela forma perversa seu primeiro deleite oral?
Diversas vezes Maria procurava sua chupeta camuflada e repelente. Havia um clima sado-masoquismo no ar. Havia sempre espectadores na hora do suplicio! Uns olhavam com cara de dó; outros de maldade mesmo. Alguns riam e outros tentavam confortar a menina.
De qualquer maneira a garota parecia inconsolável, porque quem sempre a consolava era a chupeta.
Eu disse quem porque aquele objeto de plástico com uma borracha macia na ponta representa para um número significativo de crianças , principalmente as mais solitárias, o substituto materno. A chupeta acaricia-lhes a língua descobrindo o macio no céu da boca onde maravilhosas cosquinhas embalam seus dentes recém nascidos e lhes adoçam a saliva. Principalmente quando a mãe se declara “seca” e nunca lhes dá o seio. É como peixe que se contenta com aquário quando na verdade amaria viver no oceano.
A menina cresceu e ficou sabendo de como seu pipo foi sabotado. Mas era muito tarde! Aconteceram relacionamentos afetivos em sua vida, mas todos marcados pelo mesmo padrão – queria amar mas repugnava o objeto de afeto.
Era patético! Não sabia o que fazer para conservar seus relacionamentos. Teoricamente sabia o que estava acontecendo, mas não tinha sossego para ser feliz.
Atração e rejeição simultâneas. Tocada por alguma coisa que não queria desenterrar e que lutava para emergir e é imediatamente sufocado. Mesmo que quando tocada por algo de bom que a memória aprova. Algo como o cheiro, a textura, o toque que dá sabor as coisas a sua volta.
Imaginem... Todo o universo explodia em sua boca em ondas de prazer trazendo o instinto de vida e alguém diz que aquele objeto, responsável por tanto aconchego, era uma coisa suja, fedorenta, atolada na podridão!
Como lutar contra o sentimento de perda que se repetia invocando a perda original? Não havia nem de leve a consciência de que as perdas sempre trazem um ganho. Nem que seja este o preço do amadurecimento. Mas nada que nos empurre goela abaixo pode ser bom.
Agora estava ali, sem saber como sugar o leite da vida. Engolir a sensação de vomito no desejo do seio infectado. E retirar os lábios cheios de prazer, do mamilo contaminado por fezes de barata. Amar e rejeitar o objeto de afeto! Arranhando as seringueiras da vida que dão leite de borracha, querendo cuidar de uma gata prenha para ter prazer de ver os filhotes sugando suas tetas. Com uma sensação de ausência, de buraco negro, de vertigem das alturas.
Com sensação de infinita incompletude
Coisa esquisita o que uma chupeta com coco de barata é capaz de fazer com a gente...








sexta-feira, 27 de junho de 2008

Visitar o blog http://poietisa.blogspot.com/ é uma satisfação imensa!
Clevane Pessoa é não só poeta, escritora, psicologa e tantas outras facetas, mas também divulgadora dos trabalhos de outros poetas como Neuza Ladeira, Luiz Lirio Marco Lobbus e outros. Fico feliz que me coloque no meio de tantos nomes os quais tanto admiro!
Indico este espaço tão rico para todos vocês.

domingo, 22 de junho de 2008

Arlequim e o menino

Obra de Stemamo

Maria J Fortuna


Na ponta da lua minguante
Arlequim se pendurou
Lá de cima viu pivete
Cheirando cola
- Não é assim que se sonha, gritou
E cheio de doçura
Desceu do céu
Para abraçar o menino

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Transparência




Maria J Fortuna


Desfeita em rosas
Minha criança exala perfume
Nos caminhos do outono
Devo agasalhar minhas lembranças
O sopro do inverno se faz
Na pressa do tempo

domingo, 15 de junho de 2008

Bolgs recomendados

CLEVANE PESSOA
http://www.clevanepessoa.net/blog.php

a história de Helena

Maria J Fortuna

Era uma linda cabocla que se chamava Helena. O Juiz dos Órfãos a conduziu a casa do Coronel Matos. Fora escolhida pelo Escrivão Federal para aquela casa. Era de praxe conduzir as meninas órfãs à casa das famílias para trabalhar como domésticas. Por um prato de comida passavam toda a vida ali, servindo aquelas pessoas. Não havia nenhuma remuneração.
O Coronel Matos era pai de doze filhos e filhas no nordeste do Brasil. E isto se deu no inicio do século XX, em 1909, quando as famílias acolhiam estas menores.
A desigualdade social era como sempre foi – gritante! Um tumor que ninguém ousa espremer, desde aqueles velhos tempos. Não se falava em punição para o trabalho infantil. Ali não corriam risco de se prostituir, mas havia os filhos dos coronéis... As meninas, muitas vezes eram obrigadas a iniciá-los no sexo. O que para a família era muito normal...Com isto eles não corriam risco de doenças venéreas. Quando isto acontecia todos permaneciam em silencio. Afinal era uma pobre menina órfã, nada mais! Não era moça de berço, moça de família...
O que se sabia dos antepassados daquela menina? De suas raízes? Onde estava sua família? Lembraria do colo materno e dos afagos do pai? Podia vestir os vestidos de tafetá e de renda das sinhazinhas da casa? Estudar, ser alguém na vida?
Desde o inicio foi tratada como pequena escrava. Não lhe foi dada a oportunidade de freqüentar escola. Ficou analfabeta. Fazia todo trabalho domestico. Lavar, passar, cozinhar, arrumar a casa, levar os filhos do Coronel para a escola. E cuidava dos menores.
Helena tinha 15 anos quando um dos filhos do Coronel começou a engraçar-se dela. Menina clara, de olhos castanhos amendoados e longos cabelos lisos, era um tipo de beleza! Botão em flor que não podia freqüentar os saraus de piano e poesia do casarão. Raspava velas no chão para que as sinhazinhas, com seus vestidos de cambraia filigranados por lindos bordados, valsassem com seus pares moços de família. Todos ignorando completamente os sofrimentos da menina.
O filho do Coronel a cortejava secretamente. O que lhe dava a idéia de que estava sendo amada por um príncipe! Era seu segredo. Afinal antes dele desconhecia completamente o que era caricia. O calor de um corpo tão próximo ao seu. Nos braços do “príncipe” sentia a casa rodar como se tivesse dançando a valsa das sinhazinhas! Se ele a amasse tanto quanto ela o amava, não sabia como, mas não se separariam jamais! Com o coração aos pulos entregou-se ao prazer de ser sua mulher. A família fingia não ver o que acontecia. A hipocrisia freqüentava aquela casa como o fazia em toda sociedade maranhense.
Desonrada e ainda devendo o favor de ter sido acolhida por caridade cristã, Helena engravidou. Nenhum rapaz iria olhar mais para ela. Moça é como rosa, dizia o Coronel às filhas, uma alfinetada em uma de suas pétalas nunca mais será a mesma.
Com o tempo o botão em seu ventre tornou-se evidente. O silencio era quebrado, de vez enquando, com alguns mexericos familiares. Mas todos sabiam quem havia maculado Helena. Todos sabiam quem era o pai de sua criança. O cretino do rapaz fingia nem ser com ele. Nunca mais os carinhos e promessas de antes...
Humilhada e sozinha, Helena, continuava sua rotina do dia a dia sem dizer uma só palavra. Era prudente não fazê-la confessar quanto à paternidade do bebe. Quanto menos a família sabia, melhor. Assim o rapaz não teria que reparar seu erro. Imagine casar com uma órfã que veio trabalhar em sua casa, um moço de família tradicional... Também ninguém apareceu para resgatar sua honra, como é de praxe nas chamadas famílias do bem nascidos.
Brota uma menina de outra menina. Pelos cantos da casa o cochicho era constante... A criança era a cara do pai! A mãe da família havia também parido. Então Helena tinha que se dividir entre cuidar da filha e da Sinhá que estava de resguardo. Mas quem era ela pra ter resguardo? Com isto quase não tinha tempo para curtir seus momentos de mãe. Amamentar e ninar seu bebê a quem colocou o nome de Rosário.
Quando a criança estava maior, o pai não podia vê-la sem rejeitá-la com palavras e atitudes. Chegou a bater na cabecinha da criança com uma gaiola de passarinho. Chutava e dava-lhe beliscões.
A família foi muito admirada pela sociedade maranhense. Pela caridade de acolher uma moça que havia se perdido, com sua filha em casa.
Um bom homem solteiro, com ajuda das irmãs, todos já idosos, adotaram Rosário que recebeu uma educação esmerada! Formou-se em professora e tocava piano muito bem.
Quando se tornou uma moça, apaixonou por um dentista casado. Com a assídua freqüência ao consultório acabou por entregar-se a sua paixão. Com isto engravidou debaixo dos bastidores como aconteceu com sua mãe. Só que Rosário, apesar de filha do pecado de uma serviçal da casa do Coronel Matos, apesar de marginal, havia conquistado alguma posição na sociedade. Pela educação esmerada que havia recebido.
Cresceu um pânico gelado em seu coração. Que desgosto daria a sua mãe e aos seus preceptores... Que vergonha, engravidar de um homem casado! Não havia saída para ela! Rosário comprou formicida e partiu para o interior. Desconheço até que ponto o dentista sabia o que se passava.
O formicida tirou a vida da mãe e da criança. Foi-se o fruto verde de um amor impossível!
Helena, ainda tão nova e bonita, vestiu-se de branco e nunca mais usou vestido de outra cor. Um sopro de verdade, por algum tempo sacudir o véu da hipocrisia! Houve consternação. Mas ninguém ousava dizer que a falecida, em estado vergonhoso, era neta do Coronel.
O destino do Coronel, pai da moça não foi de muitas flores. Apesar de por dez anos noivo de sua prima, seduziu uma pequena atrevida, no interior do Maranhão. Naturalmente, como fez com Helena, achava que não teria conseqüências. Mas a moça era de família pobre, mas honrada. O irmão da moça procurou o Coronel e exigiu reparação.
Teve que casar com aquela mulher autoritária, ambiciosa e nervosa. Era o que se podia chamar jararaca, com sua falha de dentes na arcada superior e o corpo cheio de jóias. Controlou a vida do marido e dos filhos oprimindo-os pelo resto de suas vidas.
Mas o marido, pai de Rosário, filha de Helena, morreu chamando por seu nome.

Lena Luci no ginecologista


- A seco é de lascar!...

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Visitem Preces do Sol e da Lua

Gostaria que vocês, frequentadores deste blog, visitassem Preces do Sol e da Lua... e depois me contassem o que sentiram durante a visita.
http://solua.blog.terra.com.br/

terça-feira, 10 de junho de 2008

Quando você se envolve afetivamente com seu pesadelo

Maria J Fortuna


Elisa tem um filho de trinta anos e poucos anos. Conheci aquele menino há três décadas quando era bem pequeno. Sempre foi uma criança irrequieta, irritadiça, agressiva.
Elisa só podia contar com ela mesma para criar o menino. Seu companheiro era ausente. Nunca assumiu o filho. Deve ter feito algum esforço... Mas não deu. Antes que a internet fosse inaugurada, ele já era virtual na vida da família. Partiu para outro relacionamento. Não digo que ele tenha deixado mulher e filho. Não, não existia como esposo ou pai. Era só corpo presente. Música sem sintonia.
A criança crescia incomodando os primos, empregados, vizinhos. Com seu velocípede de grande roda dianteira, era pavor de adultos e crianças. Quando pedalava, sentia-se todo poderoso e partia pra cima de quem tivesse por ali proseando ou meditando. Principalmente os menos avisados. Coisa de louco! Ninguém que amasse seu filho deixava o rebento em sua companhia.
Certa vez ele empurrou um velhote escada abaixo. Foi uma gritaria! O ancião tremeu, balançou perdendo o equilíbrio, mas conseguiu manter-se de pé segurando o corrimão da escada.
Havia cheiro de chumbo, quando o menino se aproximava! Todos então começavam a ensaiar um sorriso amarelo. A mãe, presente, fazia de tudo para despistar o que estava sentindo. Os pais olhavam-se na cumplicidade. Como quem diz: E agora? Estamos todos no mesmo barco...
Poucas pessoas na vida a gente tem oportunidade de acompanhar o nascimento, crescimento e entrada na maturidade. Hoje em dia só os parentes e olhe lá! Mas venho acompanhando a trajetória Dorian desde que tinha três anos de idade. Nome de prefixo significativo o dele: Dor – Ian. Que causa muita dor nos outros e, principalmente em sua mãe.
Eu me perguntava a cerca do sentimento dele em relação a sua mãe... Haveria afeto para com aquela mãe tão sofrida? Pessoa aparentemente frágil frente aos desassossegos da vida? Boa mãe, boa esposa, boa filha, Elisa... Surpreendente e misterioso o tipo de sentimento dela para com ele. Haveria limite tolerável para a convivência com um filho de atitudes tão repugnantes? Onde encontrava tanta paciência e dedicação?
E o menino à medida que crescia ficava mais exigente! Na adolescência começou a ameaçar a mãe por causa de suas mesadas, e antes de completar dezoito anos, já pegava o carro escondido na garagem e saia por ai desvairadamente. Mexeu com drogas e não conseguiu terminar o segundo grau. Nunca arrumou um lugar para trabalhar em que permanecesse um mês! Envolvia-se com mulheres libertinas.
Fisicamente nunca foi bonito. Depois de adulto desenvolveu um nariz, que além de desproporcional, é muito feio, plantado no meio do longo rosto cor de rosa. Lábios um tanto quanto polpudos e sobrancelhas cerradas. Mexe-se todo como se não comportasse dentro de si mesmo. Tal inquietude reina dentro dele até hoje e vem se agravando... Tornou-se cada vez mais explorador da mãe para quem, onde esteja, telefona pedindo dinheiro. Com todo modo execrável de colocar-se no mundo, torna-se pai de um menino fisicamente parecido com ele embora mais tranqüilo.
Elisa ama e acolhe o velho e o novo menino com seus braços finos e cansados.
Duro quando nos envolvemos com o sujeito de nossos pesadelos! Aí está o exemplo ao vivo e a cores do incomensurável desejo de amar de nossos corações. Da exigência de abraçar o próprio sofrimento vestido de gente. De querer amansar a fera insana que cada um reproduz dentro de si. Sobretudo a necessidade de conviver com nosso lado obscuro, sombrio e doente.
Dorian é a doença de Elisa. Mas é, também, sua esperança, desafio e desejo de superação. Se algum dia perder este seu filho espinhoso, penso eu, sua dor vai ser bem maior do que a da maioria das mães. Isto porque terá saudades do que não viveu com Dorian. Sentirá falta dele bebê e haverá grande hiato depois disso. Até que este amor machucado se renove no neto. Menino em flor, um grande desconhecido!
Não precisava ser assim, mas são estes misteriosos caminhos que a alma humana muitas vezes percorre para encontrar sua própria redenção...



quarta-feira, 4 de junho de 2008

Os olhos da gata preta



Maria J Fortuna


Eu estava às voltas com meus medos... Com o pesadelo da velhice e da morte. Regava fantasias sóbrias como num jardim de flores murchas. Tudo combinava com insônia, ou noite sem lua. Como uivo do lobo a distancia. Como quebra no espelho de uma dor sem sentido. Ou seja, tudo era buraco negro.
Debrucei-me no olhar da gata preta que me encarava sem cerimônias. Estava ali com seu corpo de veludo, os pelos brilhando por causa de uma réstia de luz prateada que os iluminava. Os gatos são sempre muito misteriosos e independentes. Sempre os amei, desde menina.
Os olhos verdes em que mergulhei por um longo tempo, pouco piscavam. Eram inteiramente intrigantes. Rasos, orvalhados e volúveis. As pupilas dilatadas como marés cheias ou poços sem fundo. Os bigodes enormes, brancos e expressivos, deslocavam-se para frente e para trás como antenas captando segundos. As orelhas mexiam-se a quaisquer sons distantes!
Decididamente Mia estava ali testemunhando minhas agruras no meio da madrugada. Fazia algum tempo ela me falava de sua dor. Como assim? Indagam muitos. Gata bem tratada, alimentada, dormindo nos colchões macios da casa... Mas é verdade. Faz algum tempo que ela, sem mais nem menos, solta no ar seus miados sem eco. Um miado de queixa e um olhar de suplica. Com certeza havia um protesto felino no ar.
Mia foi encontrada ainda bebe num estacionamento no centro da cidade. Fernandinha a trouxe carregada junto ao peito. Já estava em seu coração. Não havia jeito de devolvê-la a rua. Este nome Mia, era justamente por causa dos seus miados freqüentes e sem cerimônia. Minha filha partiu para Europa e me deixou esta herança.
Tivemos que castrá-la por causa dos seus violentos cios. Era um Deus no acuda! Os apelos da natureza são muito fortes para geração de outras vidas! Nós e os visinho agradecemos o bisturi que a impediu de gerar filhotes. Mesmo porque onde colocar mais gatos em apartamentos?
Mas estávamos falando de dor. Não sei como seria seu encontro com outros gatos. Ela é a única de sua espécie aqui em casa. Talvez, movida por esta solidão, ela estranhasse e até agredisse o semelhante. Diante dos fatos é fácil detectar onde está o sofrimento da gata.
Seus olhos verdes lembram as matas que gostaria de cheirar de perto. Rolar no chão, na terra. Comer capim, subir no muro ou no telhado e fazer parte do sarau das longas noites de lua cheia com um monte de gatos companheiros. Se a soltássemos neste mundo, ela não saberia como sobreviver. Por isso seu olhar de queixa, ao mesmo tempo de compartilhamento. Deve ter saudades daquilo que nunca vivenciou, mas que sua espécie o faz durante séculos... Tipo caçar, beber água numa fonte, cheirar um monte de pedras, plantas, animais e objetos largados por ai.
Eu e Mia, com seus belos e misteriosos olhos verdes, fomos cúmplices nessa noite de pesadelos, buracos negros, futuro obscuro e jardim de flores murchas... E em outras noites mais!...

domingo, 1 de junho de 2008

A filha da mãe

Maria J Fortuna
Outro dia fui visitar Antoniella, velha companheira dos anos 60, mulher brava e corajosa sobrevivente daqueles anos de chumbo, que a mim me traz uma certa paranóia até hoje.
Antoniella, estava mudada. Logicamente os cabelos quase totalmente brancos, mas seus traços finos, ainda sem muitas rugas , não escondiam um rosto marcado por amargos tempos. Os olhos, como sempre, muito tristes. Antoniella sempre dissimulou seu olhar. Não se mostrava pra ninguém, vestida de tristeza. Mas não tinha jeito. A gente sentia... o que transparência através do seu sorriso terno ou indignado . Era, como dizia o meu Mestre Eli Bonini: metade bravurina, metade ternurina. E assim se movia naquele tempo aquela preciosa figura humana.
Durante todo o tempo da minha visita, ela se mexia pra cá e pra lá, ora às voltas com a panela de cozinhar frango, ora com as verduras que adormeciam embaixo da pia. Escolhia, uma ou outra, com os dedos nervosos e começava a descascá-las freneticamente porque, segundo ela, estava atrasada para o almoço. Eu fiquei pensando... Aquela não podia ser minha amiga de outros tempos... Atrasada para o almoço de quem? Se vivia sozinha com sua filha adolescente e mais ninguém? Ah! Só podia ser para dar almoço à menina. Eu lhe falei que já havia almoçado. Eu tentava introduzir um assunto qualquer, tomando cuidado para não falar em torturas, ditadura, principalmente depois do AI5, porta aberta para a maldade que lhe deixou manca de uma perna durante um interrogatório no Dops de Belo Horizonte. Recebeu muita cacetada naquela perna para dedurar companheiros e o companheiro. E não dedurou. Ficou aleijada.
Antoniella era um exemplo para todos nós. Vergava mas não quebrava. Era dislexa, trocava algumas palavras e não aprendia tabuada de jeito algum. Apesar de socióloga. Sempre pedia a alguém para fazer suas contas. E morria de vergonha por causa disto. Depois eu fiquei sabendo que nunca vira a mãe e que seu pai bebia. E um de seus irmãos sumiu para sempre no poço fundo e perverso da "Gloriosa Revolução" de 1964. Eu olhava... olhava... para ela e não conseguia mais ver aquela garota de calça jeans cheia de panfletos embaixo do braço, subindo nas cadeiras do Diretório Acadêmico de sua Faculdade, provocando, com seus discursos inflamados o grito de Abaixo a Ditadura! Agora ela estava ali, se agitando na cozinha do pequeno apartamento alugado. Nunca conseguira ter seu próprio teto. Um sonho de consumo capitalista, talvez... para ela. Onde estava Antoniella, eu me perguntava a mim mesma, o tempo todo. A moça que engravidou de um companheiro que também havia sumido como seu irmão. Ambos estudiosos em antropologia e que abominavam a cultura da miséria. Chegavam a dar aulas sobre O Capital de Max. E sonhavam com a educação de base para o povo brasileiro como Darcy Ribeiro… Sempre a utopia de ver acabar com a fome do povo. Varrer a corrupção do País, era então o seu sonho maior para não ver a “pobreza envergonhada”, como chamava Dom Helder Câmara, que cativava os revolucionários, pelo amor aos totalmente necessitados. Bem, nem é preciso dizer o quanto Antoniella comungava com todas aquelas idéias. Ela, que descendia de uma família abastada do sul de Minas. Pai fazendeiro famoso, algo lendário até. Pra lá de latifundiário. A última vez que eu a vi no passado, antes deste encontro que lhes relato, ela passou por mim numa rua movimentada de Belo Horizonte, com a filhinha nos braços. Era inverno, naquela época Fazia frio em BH, e elas estavam abrigadas por seus pesados casacos. A menina com a cabecinha deitada em seu ombro. A pessoa que estava comigo a conhecia, comentou:
-Antoniella vive agora para esta filha.
Afastou-se da família e tenta dar à menina tudo que pode de si para esquecer os horrores por que passou. Parece evitar que a filha sofra o mínimo de frustração! - Que perigo! pensei. E foi só.
Bem, voltando ao ponto em que eu estava visitando a minha sofrida companheira, dali a pouco aparece, em nossa frente, ao meio dia, uma linda jovem em camisola curtinha , rosto sonolento, espreguiçando-se toda, ignorando minha presença e as dificuldades da mãe, que necessitava desesperadamente de ajuda na cozinha. Pela sua idade e por causa da perna macerada, há anos atrás, e que doía de lhe levar às lágrimas! Perguntou à mãe atarefada ignorando minha presença:
- Tem café? indagou displicente
- Filha, esta é uma amiga de sua mãe, apressou-se Antoniella a explicar, muito sem graça... No que a linda moça, suspirando, falou sem esboçar nenhum sorriso:
- Oi!
Nem vou esperar que você descubra que a filha de Antoniella, Maria, se apresenta como moça caprichosa, metida a burguesinha, dependente da mãe, a quem dirige os mais perversos impropérios! E que não tem nenhuma admiração pelo Che Guevara. Muito menos pelo Fidel. Pouco está se lixando para a situação do seu País. Só quando o "povão" a incomoda muito, os que merecem pena de morte, na certa. Que só gosta de conviver com "gente bonita" e tem vergonha de levar seus amigos e namorados em sua casa. É fã do Mac'Donalds e não deixa de assistir os programas da Rede Globo, de quem é telespectadora e fã assídua. E onde pensa em pleitear um lugarzinho quando for modelo e atriz. Coisa de doido! E vem o pior: tem vergonha da mãe, no que insiste para que esteja sempre bem arrumada para que não passe vergonha frente à "galera". Isto se deu na década de 80. Esta malfadada visita. Não mais tive noticias das duas. Para que? Afinal a indignação havia tomado conta de mim naquele momento. E em todos os momentos em que me recordar da Antoniella do presente, ou do passado mais próximo. Na realidade será que ela ainda está viva ou morreu de desgosto? E a filha? Teria “caído em si?” Saberia alguma vez em sua vida reconhecer que foi parida e criada por uma heroína? Alguém teve a coragem de falar quem é ou era sua mãe na realidade, o que fez para poupar a vida dos companheiros e do companheiro, pai dela? Por que Antoniella fracassou tanto na educação daquela criatura atolada em consumo, no Capitalismo cruel?A culpada teria sido mesmo a própria? É até irônica a pergunta... Por isto dá estranhas cambalhotas no ar. Espuma feito refrigerante. Para o caso cabe a Coca Cola. Eu me nego a acreditar que aquele sacrifício todo do passado terminou em Coca Cola. Por isto não tive coragem nem pra voltar lá e nem pra ter mais ou más notícias... Prefiro acreditar na outra... naquela do “nome de guerra” que escondia Antoniella.A que macerou a perna para não delatar ninguém, principalmente o pai daquela menina – a nossa saudosa Lavínia!

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