domingo, 27 de julho de 2014

Um pássaro é um pássaro...






foto de Krishnamurti

                                                                           Maria J Fortuna


Um pássaro é um pássaro, uma flor é uma flor. Por que para o ser humano é tão difícil ser ele mesmo? Parece uma pergunta idiota, de quem não conhece sua própria natureza e as dificuldades cognoscíveis ou não, por que tem que lutar para conseguir tal intento? A pergunta poderia ser: por que criamos, ao longo do tempo, tantos obstáculos para a realização plena da nossa natureza humana? Sabemos que logo que a luz se faz a nossos olhos, já estamos às voltas com nosso próprio temperamento, que se a princípio não aceito pelos pais, contribuirá para nos transformar num desastre! Depois vem a família, religião, valores culturais que ajudam ou dificultam o autoconhecimento. Isto todo mundo sabe, mas aí me vem outra pergunta: que espaço temos para sermos livres de dogmas e preconceitos em nossas vidas? Sim, porque para que haja autoconhecimento precisamos, acima de tudo, de liberdade.
                         Durante muito tempo li muitos livros e textos de Jiddu Krishnamurti. Este Mestre foi o grande responsável pela quebra de paradigma de muitos dos meus companheiros na década de sessenta. E o que me encantou nele foi a força interior que o fez se negar a ser o veículo para o "Instrutor do Mundo". Krishnamurti, no entanto, não tinha compromisso com nenhuma linha filosófica ou religiosa, não sendo do Oriente nem do Ocidente, mas para o mundo todo. Declarou ser a verdade "uma terra sem caminhos", à qual nenhuma religião formalizada, filosofia ou seita daria acesso. Só tinha compromisso com ele mesmo. Imagine a revolução interior, a ausência de referência quando, de repente, uma pessoa referenciada por crenças e dogmas judaico-cristãos, se depara com tal proposta de liberdade? Krishnamurti afirma que é possível produzir mudanças fundamentais na sociedade, apenas pela transformação da consciência individual. Isto me lembra a proposta de Paulo Freire sobre a importância da necessidade de uma pedagogia dialógica emancipatória do indivíduo oprimido. O que nos oprime afinal? Por que temos tanto medo da liberdade?
                          Neste mundo moderno está cada vez mais difícil o indivíduo ser autor de sua própria história. No apelo do consumismo, na luta desvairada pelo poder, na correria da sobrevivência, estamos nos perdendo. As máscaras se sucedem, conforme as conveniências e, cada vez mais, ocultam a nossa própria verdade. A violência, a exploração e a injustiça estão presentes o tempo todo, sem data para acabar.
Enquanto tudo isto acontece, alguém acorda absolutamente ausente de si mesmo e, nesse estado, consulta o horóscopo do dia, toma um desjejum às pressas, pega condução para o serviço. À noite, ao chegar em casa, liga a TV no noticiário do horror, assiste à novela da onda e vai para a cama dormir ( se conseguir). Acorda no dia seguinte, quando tudo recomeça...
Quem é esta pessoa? Não faço a mínima idéia... Nem ele próprio.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

A sala mágica com suas borboletas






                                                                                                                                                          Maria J Fortuna


Eram muitos os casulos que se alojavam nas paredes daquela sala. Todos os dias a moça de branco ia lá ver quais os que tinham se rompido, deixando livre mais uma borboleta. Então algumas casquinhas vazias voavam até cair, aos pedaços, no frio chão da sala onde ela atendia seus pacientes.  Parece que por causa daquelas lindas pequenas ninfas coloridas que a Natureza tingiu de amarelo e laranja,  e a presença da gata que gostava de parir na grande gaveta da escrivaninha, aquela sala era realmente abençoada! Ninguém dizia que se tratava de um cômodo de um posto de psiquiatria! Sem falar nas plantas que se vestiam com um verde magnífico, apesar dos poucos raios de sol das manhãs que penetravam, timidamente, pelo basculante, mas sem tocar em todas elas, nas plantas.  Ali estavam ali, decorativas, refrescando os casulos no calor do verão e mostrando presença solidária no inverno. Mas, invariavelmente, perfumavam a sala! Ninguém dizia que naquele local eram realizadas entrevistas onde seriam atendidos os pacientes com diagnósticos dos mais variáveis em psiquiatria.  Muitas vezes, o contato com aquele ambiente nascedouro de borboletas, folhas verdes e gatinhos, os acalmava.  Alguns chegavam a desembrulhar ali suas mágoas, buscando remédio para suas feridas em longos monólogos ou diálogos com a moça de branco. Debulhavam fantasias e viajavam em seus delírios, ou simplesmente ficavam em silêncio, sentindo os eflúvios do ambiente.
A gata malhada de cinza e branco que gostava de dar a luz ao filhotinhos na gaveta, ali ficava até que chegava a hora da mãe carrega-los na boca, transportando-os para um lugar desconhecido dos profissionais e pacientes do Posto.  Foram três crias em dois anos!
Muitos diziam que a moça de branco tinha pacto com bruxas e fadas; outros que o pacto era celestial: seres de luz visitavam a sala mágica, que atraia plantas, borboletas e gata prenha.
Um dia de inverno, a moça chegou à sala e havia uma mancha marrom saindo de dentro de um dos casulos incrustrados no tapume, próximo às plantas.  O líquido derramado brotava por uma pequena fenda na parte inferior do pequeno envoltório cinza.  A moça viu que em sua   extremidade, duas pequenas asas ensaiavam aparecer.  Então ficou ali, esperando o andamento do parto no desabrochar do momento.  Mas os minutos se passaram e nada do inseto emergir do casulo... O que teria acontecido?  E entre o atendimento a um cliente ou outro, ela deitava o olhar na parede branca onde estava o pequeno casulo,  como se quisesse aquece-lo com seu olhar preocupado. Talvez pudesse ajudar no parto  usando os dedos para libertar o serzinho que parecia ter arrefecido em suas forças na luta pela vida.  Mas tinha muito medo... Podia abrir o casulo sem que o inseto tivesse preparado para nascer. Fugia, outrossim, de vê-lo lá dentro,  com suas pernas longas encolhidas e as asas inertes,  murchas e molhadas no interior do recipiente que não cedeu ao rompimento da vida!   Lembrava-se de como os outros casulos de onde saíram  borboletas amarelas. Elas se contorciam no interior dos mesmos,  talvez dolorosamente, para romper a casaca,  mas de lá partiam,  com as asas úmidas após o período de pupa e que, depois daquele instante, milagrosamente voavam em direção as flores dos canteiros plantados pelos pacientes, que ficava  no jardim, em frente á sala de laborterapia. A partir dali,  era com o sol e o vento secar-lhes as asas. Mas aquela imóvel, de envoltório semiaberto, era diferente.   O que havia acontecido?
Num instante de reflexão sobre nascer e morrer, a moça sentiu que ali estava a representação viva do ganhar e do perder.  Do que é inevitável e do que pode ser superado. E imaginou quantas conquistas e derrotas lhe traziam o atendimento a seus pacientes chamados de “loucos”. Os anos que teria que passar diante da pouca possibilidade de recuperação, mesmo parcial, de uma maioria considerável deles. E de outros que não teriam nenhuma chance de consegui-lo.  O casulo duro, espesso, maldoso, simbolizava naquele momento, além da doença, o ambiente social daqueles cuja superação parecia impossível!    O casulo humano é fincado na parede do útero, dentro de um corpo, próximo ao coração,  e ali se alimenta porque nasce com fome de leite e de amor. Um deles só não basta. Teria que ser a comunhão dos dois, pensou. Quantos haviam nascido do amor?
Ali estava um ser que havia fabricado algo em volta de si  mesmo e que acabou se tornando seu próprio féretro. Teria que celebrar quando um daqueles homens e mulheres voasse, com suas  consciências, em direção ao sol! Para isso a metamorfose seria lenta e ela haveria de ter paciência... Não podia dar voz às suas frustrações.  Mas longos anos de profissão aguardavam a moça de branco para vivenciar o processo do seu próprio crescimento.  Mesmo assim era muito bom estar ali. Porque da dificuldade vem à esperança! Aquela borboleta não havia nascido, mas as demais voavam soltas, felizes!  Disseram sim à vida!
No final do expediente, a moça sentiu o silêncio no Posto de Psiquiatria. Ali estava ela diante do casulo que ainda mostrava as pontas das pequenas asas que não voariam. Retirou o mesmo da parede e respeitosamente arremessou-o pelo basculante em direção ao canteiro de flores rosas que circundava o prédio.  Apagou a luz da sala e saiu.

 


segunda-feira, 7 de julho de 2014

domingo, 6 de julho de 2014

Ninguém avisou...


 

Maria J Fortuna

 


Ninguém avisou pra gente que seria assim...
Tem curso para educar crianças, para atender aos vendavais da adolescência, para moços, senhoras menopausadas, etc. Tem até curso para lidar com terminais! Mas ninguém comunica com clareza pra gente o que poderá acontecer depois dos sessenta anos de vida... Salvo nos programas sobre saúde para a terceira idade.
Tal comunicado partiria, logicamente, de quem já vivenciou a estação do outono e chegou ao inverno. O que ocorre no corpo é óbvio. Mas, e no espírito que carece de superação a cada passo? O que toda esta enorme população de idosos está sentindo a respeito?
Salvo a fragilidade física, como denominador comum, o que sente esta grande camada da população à medida que as décadas se sucedem? Estamos ai, trazendo todas as estações em nossos corpos.
Sem chance terapeuta mais novos tratarem de idosos. Falta de referência. É como padre aconselhando casais. Na verdade quem não chegou até lá, não tem a menor idéia da situação. E os que chegaram preferem não comentar.
Procuro dentro de mim onde está o medo que gera preconceitos. Encontrei na caixa preta do inconsciente... Medo da morte! Um compromisso que a gente traz ao nascer. Quem dá a um filho uma coisa dá a outra. Informação melancólica para a criança ou o jovem que fatalmente percorrerá a mesma estrada, mas necessária.
No frigir dos ovos, sinto que toda nossa dificuldade de pessoas, jovens ou idosas, reside no tabu da morte. Fato que não engolimos. Não só a certeza da finitude, mas a velhice é muito dura de ser aceita porque uma sinaliza a outra - o fim da nossa vida na Terra. Por isto evita-se falar sobre o assunto. Talvez em consultórios médicos, ou na confidencia de um individuo para o outro que está passando pelo mesmo processo... Mas é difícil encarar o fato com naturalidade. Tenho conhecido pessoas que apesar de serem muito religiosas, tem a mesma dificuldade.

Mas qual o momento da vida que não temos o desconhecido pela frente? E qual de nós não passa por pela sinfonia inacabada das perdas em todas as fases da vida? O medo de perder será maior que a vontade de ganhar? Quem, por alguns segundos, não se perdeu da mãe quando criança, e ficou desesperado chorando pelos cantos, sentindo um vácuo dentro de si? Dá para avaliar o que significa isto?
O desconhecido é uma questão sem solução para o ser humano. Por isto mesmo existe a esperança e a fé. A gente morre todos os dias por falta de fé. Para os mais intelectualizados há que ter consciência de que a fé vai à frente e o intelecto atrás. Não adianta querer discutir está questão.
Ninguém avisou a gente que seria assim... Mas se descobrimos que assim é, vamos reconsiderar o que estamos vivendo.
Teoricamente eu sabia que meu corpo iria ficar tão cansado algum dia que eu simplesmente pediria, talvez silenciosamente, para ir embora.
Mas também desconhecia que ao mesmo tempo em que o corpo vai caindo por terra uma nova semente nasce em nossos corações – a semente da transcendência! Este apelo estimula nossa capacidade criativa que brota com maior intensidade. Na atenção movida pela curiosidade, o volume de indagações vai aumentando consideravelmente! É hora do passado torne-se aliado e que as experiências antigas fundamentem as novas.
Tenho sentido que ao lado das dificuldades físicas, a capacidade de amar se amplia devido ao exercício de tolerância conosco mesmos e da compaixão para com os outros. A paixão continua existindo... Apenas não temos mais interesse em processar tudo que acontece a ponto de guardar na memória um punhado de coisas inúteis.
A idade é um número que não tem contagem regressiva. Cabe a nós mesmos somar conhecimento, sensibilidade e sabedoria.
Com tanta riqueza acumulada, não podemos pedir licença a ninguém para nos fazer presente, seja aonde for! Melhor que a gente se torne presente em amor e humor.
Importante é acreditar naquilo que estamos criando e vivenciando a cada dia. Nem todo mundo tem este privilégio até a hora partir. Cada um segue com a bagagem que arrumou com cuidado nos porões da alma.
Costumo dizer a mim mesma quando o medo se faz presente: enquanto minha alma passear pela avenida cheia de carnaval e repleta de coisas sagradas, estarei vivinha da silva!
Ouçamos a música do Gonzaguinha em nossos corações: "Cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz"... Que seja nosso refrão.
Tristezas do passado e medo do futuro... Péssima dupla!
Bem, Já que ninguém nos contou como seria o inverno da vida, o jeito é, corajosamente, descobrirmos por nós mesmos. Tem outro jeito?

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Sou alguem preocupado em crescer.

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