sábado, 27 de dezembro de 2008

Mulher de 50 ou mais...


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Aviso bem humorado

Gente, amanhã tem nova charge! Não percam!

A louca dentro de mim



Maria J Fortuna

Ela não pede licença para fazer-se presente! Sussurra coisas incríveis a meus ouvidos! Não me larga, a danada! Quando menos espero se manifesta. Sai das minhas raízes... Dá medo quando começa a cutucar meus sentidos. Abusa dos meus sentimentos, profana-me o corpo. Eu lhe digo: - Vai embora, peste, me deixa! Mas não adianta. Não respeita tempo de vida na Terra. Instala-se como pensamento obsessivo fazendo-me sentir vontade de abrir a boca e falar o que não devo. Ameaça mexer com a loucura dos outros sugerindo-me inflamar seus egos.
Como seria soltar a louca de vez? A desmiolada aconselha-me a fazer coisas que não tem cabimento! Tem hora que dá vontade de puxar-lhe os cabelos e subjugá-la de uma vez por todas. Mas quem disse que consigo controlá-la? É igual gato: quanto mais se quer prender, mais quer se soltar. Não tem solução. Está sempre no cio... Preciso ignorar suas alucinações. Mas é impossível! Volta voltinha, lá vêm elas...
O máximo que posso fazer é não me identificar com sua visão distorcida e desfocada. Afinal não sei donde vem. Se nasceu com minha árvore genealógica, ou se é coisa do pecado original. Apenas ouço sussurros nos galhos da noite, como se ali tivesse a árvore onde Judas se enforcou. É o que ela mais faz: tentar para que eu caia em pecado de traição a mim mesma colocando-me em situações de risco.
Sem ter nem pra que parte pra cima de mim. Gosta muito dos dias de chuva para me falar de solidão. Diz coisas absurdas de mim mesma. Tenta apagar minha fé e diluir meu amor. Insinua provocações e diminui meu tempo de sono. Depois delira... Vagueia pelas flores e mergulha na lama. Veste-se de borboleta e rasteja como serpente.
Na adolescência pegava-me no colo levando-me a montanha russa dos sentidos... Despencando o trenzinho, causando pânico e orgasmo conjuntamente... Era incrível! Sugeria prazeres infindos, a louca desvairada! Eu ultrapassava normas, feria leis, burlavas vigilâncias. Misturava perfume de amor com hálito de sexo. E, sobretudo, passava por cima do bafo da moral familiar. Aí mesmo que se despia! Sugeria bater no pai e sacudir a mãe e acabar com os irmãos, nas horas de raiva. Não dava para esconder à louca. Ela faiscava em meus olhos e crispava-me as mãos nas mangas do desejo. E quando brotava toda desgrenhada, assim do nada, cantava canções do Chico?
“- O que será que me dá, que me bole por dentro será que me dá?...”
Mas... Devo confessar que não posso deixar que se vá... Não posso! Ela faz parte de mim. Assim como me assombra me joga na ação! Dá sabor sempre novo a tudo que faço e me faz sentir o mel das delicias nos frutos da vida. Preciso da louca! Sem ela como vou temperar meus poemas ou arriscar arrancar alguma forma de uma argila bruta? Preciso de sua força, do seu fogo, de seus delírios, de suas pinceladas ao meio dia e de seu canto no meio da noite. Deixo então que me circule pela corrente veloz do sangue. Sem ela não serei suficientemente lúcida para perceber que a melhor coisa da vida é um pouco de loucura!

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008


Feliz Natal para todos os que frequentam Artes e artes, com muito amor e paz nos corações e muita saúde no novo ano de 2009!

O Natal de Jesus

Maria J Fortuna

“Este povo somente me honra com os lábios; seu coração, porém, está longe de mim” (Isaias 29,13)

Foi-se o tempo em que minha família rumava todos os anos no Natal de Jesus para a celebração da grande Missa do galo... Era muito bom! Eu e minha irmã de mãos dadas seguíamos na frente, depois vinham meus dois irmãos mais velhos e, por fim, meu pai e minha mãe caminhando na estreita calçada das ruas pedregulhosas de S.Luis do Maranhão! Era um dia alegre, ao mesmo tempo solene! A gente ia sempre à mesma Igreja – a de S. João onde fui batizada. Durante a Missa meus irmãos tocavam o sino na hora da elevação da Hóstia. Eu morria de inveja! Queria ser menino, de qualquer jeito, para me dependurar nas cordas que faziam o sino badalar!
A Missa do galo era belíssima! A igreja repleta de incenso gostoso misturado ao perfume das angélicas. Tudo era mágico e maravilhoso! Eu fechava os olhinhos e pedia ao Menino Jesus que se tornasse meu amigo, que não ligasse para o fato de eu ser menina. Que por causa disso mesmo, eu o trataria com mais delicadeza. Enrolaria seus cachos louros nos dedos soprando-lhe os olhinhos para fazê-lo sorrir e faria o possível para que dormisse em meus braços.
Os fiéis oravam com muito ardor. Parece que todo mundo tomava banho e vestia sua melhor roupa. Eu me lembro de um cheiro de naftalina misturada com brilhantina. Os homens guardavam seus ternos, de preferência brancos, nos guarda-roupas esperando o grande dia! As mulheres penteavam seus cabelos com capricho. As que eram ricas usavam jóias caras e vestiam seda. Abanavam-se com leques perfumados na hora do sermão.
Depois da Missa vinha à fila para beijar a representação do Menino Jesus que ficava exposto na frente do altar-mor. Para evitar que todos beijassem o mesmo lugar da imagem, a gente osculava as fitas coloridas que partiam das palhinhas do presépio.
Já em casa, ceávamos uvas, passas, nozes, castanhas, maçãs e peru recheado com farofa. Era o maior banquete do ano! Na sobremesa fatia parida. O que aqui no sudeste chama-se fatia dourada, feita com pão dormido, farinha de trigo e ovos.
Depois as crianças abriam os presentes. Só os pequenos ganhavam. Ficávamos ansiosos para saber o que Papai Noel havia nos deixado. Eu queria um bebê recém nascido, mas só ganhava boneca menina de cachos ou transinhas. O que eu não faria para brincar com Menino Jesus!
Lá em casa não tinha árvore, mas havia o presépio que encantava a gente! Passávamos o ano todo guardando pequeninos carneiros, vacas e bois, pastores e anjos para compô-lo. Guardávamos areia da praia para forrar o chão da estribaria onde Jesus foi colocado após seu nascimento. Nós, mulheres da casa, cuidávamos do presépio.
Mais tarde a gente pedia benção aos pais e ia dormir. A festa era tal qual o aniversariante – simples, despojada de luxo.
Quando vejo hoje em dia a descaracterização do Natal transformado em festa de Papai Noel, dá-me dor no coração... O evento está desfigurado... Pelo que vejo nos jornais da TV, os países do ocidente esbanjam figuras monumentais! Grandes árvores, vitrines enfeitadas, papais noéis gigantescos e um enorme consumo de bebida, comida, presentes, enquanto a miséria grassa num submundo, abaixo da linha da pobreza.
Pouco importa se 25 de dezembro foi ou não o dia em que Jesus nasceu, ou reacender a velha discussão, de outras tradições religiosas, acerca da sua divindade. Pouco importa os que querem transformar o evento numa festa apenas de encontro fraternal entre as pessoas. Nós cristãos cuidemos de ser cristãos e deixemos de lado tanta extravagância! Pois há que resgatar o verdadeiro espírito do Natal de Jesus. O mundo está precisando deste reconhecimento. Afinal como ele mesmo falou: “- As raposas têm seus covis, as aves do céu, ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde recostar a cabeça”. Para que tanto luxo e consumo? (Lc 9:57-58)
Que vontade saudades do Natal de minha infância!

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Momento poético


Cântico da Alma

Maria J Fortuna

É dia de amanhecer
Momento de despertar
As cordas do meu coração
São tocadas
O fruto torna-se sazonado

Dilatadas pelas emoções
Afinam-se a claridade da luz
Como pupila crescente
Nos olhos da noite que se foi
Devo reverenciar a senhora vida
Nobre dama que mantém meu corpo
E alimenta minha alma!

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

A convidada especial




Maria J Fortuna


Depois de trinta anos em BH voltei ao Rio de Janeiro, onde passei minha infância.
Por aqui já faz um tempinho que estou recuperando o sentido das coisas que me cercam e o significado delas. As circunstâncias vão empurrando a gente como uma bola de futebol num campo lotado de jogadores ganhadores e perdedores Um jogo que não acaba nunca! Até que mudemos de campo... E aí entra o que absolutamente não conhecemos. Mas tenho um fiel propósito de ser coerente com o que sinto e penso até que aconteça a mudança definitiva para o campo de lá, onde um número significativo de parentes e amigos estão existindo.
Então arrumei com carinho meu novo quarto em casa da tia idosa. Fiquei tentada a convidar algumas pessoas para inauguração. Só que lembrei que aqui não tenho mais amigos. Os que tinha quando jovem já casaram, mudaram e não deram mais notícia.
De repente,quando eu estava caminhando na Rua das Laranjeiras, pensei numa pessoa que não faltaria ao evento: minha mãe! Que importa se já está vivendo no campo de lá. E daí?
Fácil, para mim, vê-la com aquele vestido cuja estampa parecia o papel que envolvia o vidro de Sal de Frutas, um remédio usado contra azia e dor no estomago nos idos anos 50 do século passado... O vestido tinha um fundo preto com florinhas coloridas. Minha mãe tão sorridente, magrinha sem asma, pele de jaspe, lindos cabelos castanhos soltos, olhos bondosos, usando aquela meia, quase transparente, com a costura aparecendo atrás e que desfiava toda hora. E ela nem reclamava... Sapatos de saltos quase baixos e uma bolsa de couro, sempre combinando com os sapatos.
Viria com sua sombrinha de cabo madre perola, com os lábios vestidos com discreto batom vermelho, que ela usava só em festas familiares. Não comparecia a nenhuma outra.
Fiquei pensando como é difícil aceitar as maldades do Tempo! Ela teria quase cem anos agora. Sou, além de filha caçula, um rebento nascido tardiamente para aquela época Uma filha temporã, de uma gravidez escondida como se fosse a de uma menina moça que se tornara mãe precocemente. Mas era por vergonha de ter mais um filho em idade mais avançada, com o marido desempregado durante a feia crise pós guerra. Com isto a tive por menos tempo que os outros filhos que eram três.
Ela iria envolver meu quartinho com seu perfume de alfazema misturado ao pó de arroz cheirando a flor de maçã. O privilegio de sentir este doce perfume não era reservado apenas aos que a beijavam na face. Era como se incensasse todo ambiente de uma forma mágica. Manha gostosa de tudo que cheira a mãe. Por fim ser abençoada pelo gesto prazeroso do seu abraço! Eu me sentia como envolta em lençóis de cetim tal a maciez de sua pele!
Sentaria na cadeira de honra - a que tem almofadas bordadas de carinho - iria desfiar um longo rosário de elogios bondosos a minha humilde decoração. Seus dedos suavemente mexeriam com meus cabelos naquele gesto gostoso que sempre precedia a célebre frase em que ela manifestava, delicadamente, sua estranheza a meu respeito:
“- Gostaria tanto de saber o que se passa nesta cabecinha....”
Tenho uma cama confortável, um móvel para computador e nele farei todas as viagens que meu coração pedir. Desde ver fotos antigas, até escrever crônicas e poesias. Faz parte ainda do meu pequeno espaço uma estante com delicadas estatuetas de anjos, um porta CDs que, em sua maioria, são de musicas clássicas e MPB e muitos livros. Há uma janela que dá apenas para a parede de outro prédio e é só. Não cabe mais nada!
De qualquer forma, rompendo as cortinas do tempo, numa visão surrealista, minha convidada de honra acaba de chegar! O abraço é longo, saboroso, acolhedor, apertado, sentido e saudoso! Minha mãe cheia de encantos ilumina completamente meu pequeno quarto. De um jeito tal que aqui só cabe felicidade!
Quem disse que o amor não existe? Quem disse que ele não viaja no tempo e se desloca anos luz ou mais que isto para despertar tudo de bom no coração da gente? Quem disse que aqueles que vivem em nossas lembranças são fantasmas? Quem disse que um grande desejo de encontro se realiza apenas fisicamente? E quem disse que não podemos receber a flor de quem amamos?
Eu e minha mãe dançamos ao som de uma valsa pisando medos magoas e cupins de receios mal fundados. Eu me sinto pequenina em seu regaço, como sentia quando me fazia dormir. Eu lhe digo que o tempo não é tão mau, ele me espreme, cada vez mais, para que nosso encontro aconteça também do lado de lá. Aí será minha vez de chegar, mas não como visita.
Pouco quero saber das maldades do senhor Tempo, que a levou tão cedo para longe de mim. Agora ele não existe. Ela está aqui, acarinhando meu mundo e dando-me notícias de Deus.
Pronto! Meu quarto acaba de ser inaugurado!

domingo, 7 de dezembro de 2008

Tenho a honra de postar em Artes e artes, a poesia "Giramondo" da minha amiga Rosane Zanini, que recebeu Menção Honrosa no Prêmio Nósside Internacional de Poesia-2008 . Ela é arquiteta e vive em Zürich - Suiça, Rosane além de escritora e poetisa, é doutora em planejamento urbano e regional pela Universidade de Berlim.


Giramondo


“No man is an island, entire of itself;
every man is a piece of the continent,
a part of the main”
(John Donne, Meditation XVII)

Como um peregrino
estou destinado
a viver aquilo que nunca sonhei
a ser alguém que nunca imaginei
a partir constantemente
pois para raízes
me falta o chão.

Se por vezes sorri
foi apenas por ilusão
porque não fui senão
um solitário nômade
buscando auroras
prometidas
a tantos outros
mas não a mim.

Como um andarilho
estou condenado
a viver aquilo que jamais pensei
a ser alguém que jamais desejei
e nem nunca serei
a cair freqüentemente
porque – apesar do desejo –
me habita o medo
de seguir vagando
de porto em porto
sem pertencer a aquele seleto clã.

Se muitas vezes perdi
não foi porque pouco tentei
e o alvorecer, radiante aurora
– como sempre foi e sempre será –
não me despertará.
Porém contudo, um pequeno raio
de esperança luz ao anoitecer segredará:
- Giramondo, em terras estranhas distantes eternamente errante!

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sábado, 6 de dezembro de 2008

Recomendando blog

Pessoal, eu estive num blog tão singelo... tão fofinho.http://neydearteneydearte.blogspot.com/. Vocês vão adorar as poesias da Neyde

A pressão do doutor cardiologista




Maria J Fortuna

- Você viu o absurdo que o Presidente falou na ONU? Indagou-me do nada, o cardiologista que atende tia Lourdes.
Encorajado com minha aparente postura alienada e levando a cliente pra trás do biombo a fim de proceder ao eletrocardiograma, continuou sua fala bem entusiasmado. Acho que confundiu meu silencio com aprovação, só podia ser...
- Que vexame para o país! Este homem ter coragem de falar que a fome é responsável pelas guerras! Afinal a razão está com o Bush, que já deveria ter invadido o Iraque há muito tempo, sem deixar nenhum terrorista vivo por lá.
Fiquei espantada com aquele doutor que trata corações... O homem ia falando... Falando... E minha tia deitada esperando pelo eletrocardiograma que apenas ensaiou começar. E gesticulava para lá e para cá, dando continuidade ao rosário de tolices.
- Vexame, continuava repetindo com outras palavras, como pode um homem sem cultura, representar o Brasil lá fora dizendo esta barbaridade! Onde já se viu? A fome justificando terrorismo! O mundo precisa de paz, mas com um monte de terroristas a serem exterminados? ... Não deveria ficar nenhum vivo! O onze de setembro foi um descalabro! O mundo precisa de uma resposta!
E o doutor estava passando de rosa choque ao rosto vermelho e eu calada, observando e minha tia, quietinha, atrás do biombo esperando o “eletro”.
Em minha mente desfilavam cenas terríveis dos filmes do holocausto judeu. E eu ficava cada vez mais perplexa com o discurso inflamado do cardiologista que é um deles. Eu vi a figura do doutor virar o próprio Ariel Sharon bem gordo, ocupando toda a tela da TV. (nada contra os judeus). E pensei nas atrocidades que rolam entre Israel e Palestina a fora... E a chacina das crianças na Rússia?.. Saddan matando os curdos e Bush os iraquianos. Cabeças sendo degoladas e o nosso doutor de coração, incentivando a guerra e aprovando o Bush como Salvador do mundo! Ali estava a expressão viva do que eu só leio nos jornais. E eu calada... Contemplando o horror daquela situação. E o imensurável absurdo de quem defende guerras e elogia carrascos. Ainda mais de quem, pode ter tido algum parente trucidado pelo SS de Hitler. É de cair o queixo...
De repente o homem já estava salivando muito, com o rosto meio que lilás E eu continuava quieta, na contemplação silenciosa daquela triste realidade. Apesar de que tal atitude já começava a despertar suspeita no doutor. Afinal havemos de convir que aquela situação inusitada em que eu e minha tia estávamos, era como assistir uma peça de teatro do absurdo! Ali deveria acontecer uma consulta médica e não um desabafo tão ameaçador!
Finalmente ele começou a fazer o eletrocardiograma. Mas isto não lhe cortou a mofada fala:
- Onde já se viu isto? O mundo está entregue aos perdedores... Quem diria? Continuava o cardiologista, passando de cara lilás para roxa..
A estas alturas eu já estava pensando no Gandhi. E nos pacificadores como Jesus, vítima de uma macabra engrenagem política e agora sendo usado para fazer política! Pensando em todos os fundamentalistas do mundo! Nas guerras santas, na Inquisição e até nos circos romanos com cristãos jogados as feras! Pensei coisas e loisas...
E o sujeito médico, com o estetoscópio no pescoço gesticulando agora completamente roxo!
A conversa do doutor era de tal forma nazista que não dava nem pra querer romper o véu do absurdo. Então tive a feliz idéia de propor outro assunto, mas adequado à situação:
- Doutor, comprei este aparelho de pressão digital e gostaria de saber como funciona.
Puxa! Foi um alívio!... Finalmente ele entrou no clima da consulta, pensei.
- Hum... Murmurou, depois de um curto suspiro, a fim de se recolocar no ambiente do seu consultório. Vou colocá-lo em sua tia e a senhora observa como funciona.
Foi atrás do biombo onde a velha senhora aguardava pacientemente, ainda deitada, o resultado do eletro. E colocou o aparelho em seu pulso.
- Hum... 12 por 6. Tudo bem! A senhora confere aqui, por favor.
A cor do rosto bem feito do doutor foi voltando aos poucos do roxo, ao vermelho e daí para o rosa choque, depois para o rosa menos forte... Mas ele ainda arfava, ainda estava emocionado com o tema de seu discurso, em que alugou nossos ouvidos para ouvir sua explosão tão insípida quanto inconseqüente.
- Agora, para testar melhor, vou experimentar em mim mesmo o aparelho, falou com autoridade. E sentado colocou o aparelho no seu próprio pulso.
- A minha pressão está... Bem, um momento... Hum... 20!.....
E eu nem fiquei sabendo a mínima... Ele engasgou e não falou.
- Por que estou com a pressão tão alta? E fez uma cômica cara de medo e surpresa Estava suando por todos os poros e repetiu o procedimento por mais três vezes!... E sempre dava o mesmo resultado.
E o rosto do rosa começou a ficar branquinho... O doutor estava passando mal.
Não perdi tempo:
- Pois é, doutor, se eu fosse o senhor não ficava tão emocionado com estes assuntos de violência... O senhor vê sua pressão tá lá encima! Ódio mata, sabia? E desci minha tia da mesa do eletro, finalmente.
Saí dali com uma estranha sensação de vingança. Pra falar verdade eu realmente adorei a pressão alta do doutor!

Mullher de 50 ou mais...


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sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Julia

Maria J Fortuna

Julia era alguém com dificuldade em se enraizar na existência. Mas tinha um coração inteligente, aquele negado pela maior parte da humanidade durante séculos de história, renegado em prol do poder e ambição.
Por mais que se ligasse as causas sociais, haviam despenteadas horas em que esquecia as pessoas do mundo e navegava em sonhos. Era seu único pecado: excesso de abstração.
Por sofrer de insônia, passava noites em que, desespero a parte, enchia seus cadernos de poesia. Era o que a mantinha viva, apesar do sono no dia seguinte, da fisionomia cansada, mas quase angelical, que a tornava estranha ao grupo da universidade. Este ar de quem não se interessa por frivolidades, de estar em mundo desconhecido, tornava-a carismática, desde que em suas ausências pairava mistério: “onde estará ela agora?”, indagavam as pessoas que a rodeavam.
No momento em que sua existência se desenrolava a crueldade andava solta no Brasil nos idos 1964 - a malfadada ditadura militar.
Julia não tinha competência para entender nem acolher o ódio. Seu perfil tinha traço de resistência natural a grosseria e brutalidades. Quando acontecimentos se tornavam por demais cruéis, refugiava-se na raiz de suas poesias e transcendia no amor as coisas ternas e doces da vida como um gatinho ou uma planta na janela.
Para que se arriscar a ser pisoteada quando em seu coração havia colméia que destilava mel? Contudo abelhas espertas impediam que alguém se aproximasse dela com desrespeito, invasões e maledicência.
Naquele regime militar, torturas eram praticadas em meninos e meninas desarmadas numa luta covarde e desigual. Isto a obrigava sair de seu mundo esquizóide para aterrissar em campo minado pela violência. Mas não conseguia ser agressiva. Havia necessidade de ter paz e estar de volta à liberdade de Deus. Jogava palavras que emergiam do seu inconsciente para colhê-las da memória e fazer delas um arranjo nem sempre perfumado e colorido, mas reconhecido pelas almas mais sensíveis, como expressão do seu ser – a poesia.
Pois foi num desses dias em que ela engrossava fileiras protestando contra a repressão que se abateu sobre o povo brasileiro, que seu sol interior se escondeu por trás de uma nuvem pesada.
Primeiro de maio, dia do trabalho, num dos raros rompantes em sua existência, compareceu a uma reunião de operários sindicalistas e estudantes universitários, no auditório de um prédio em Belo Horizonte. Alguma coisa estranha a seu temperamento crescia dentro de Julia. Pois a cada protesto de um orador mais inflamado, o calor da indignação aquecia seu peito, tomava conta dela que comungava com aquela energia nova e magnífica! Chegou a Levantar os braços com os punhos fechados. Unir-se ao estribilho que brotava da garganta e se transformava em clamor: “– Abaixo a ditadura!”. Espremia dentro de si o tumor da mágoa pela injustiça e transcendia o medo. Unia sua voz a outros com o mesmo calor e esquecia seu caráter de pessoa vulnerável, indecisa e sonhadora.
De repente o tumulto! Uma onda de gás lacrimogêneo penetrou no recinto fechado. Homens fardados, de cassetete nas mãos batiam impiedosamente nos protestantes. Correu para o pátio do prédio e em seguida para o muro que cercava o edifício. Ela e outros jovens companheiros estavam encurralados! De repente apareceu um operário que cruzou os dedos da mão para agasalhar seu pé de proporção infantil. Sugeriu assim que escalasse o muro. Apoiou em seu ombro e foi o que rapidamente fez, em meio à gritaria da multidão ameaçada. Ali no alto do muro viu, por um instante, alguns dos seus amigos gritando e correndo, outros encantoados em várias partes do terreno. Pulou a mais de dois metros de altura, arriscando-se a quebrar os ossos e correu como nunca o tinha feito até então.
Parecia que seu estomago ia sair pra fora! Vomitava uma gosma estranha, enquanto vinha-lhe um choro convulsivo, não sabia de onde, em ondas e golfadas. Do outro lado do muro os militares passavam de dois a dois, com cachorros treinados para atacar. Continuou correndo feito louca com um grupo de colegas para a Praça Raul Soares e ai entrou numa Lanchonete, limpando os olhos com a costa das mãos. Alguns cavalos transportavam homens furiosos que desciam o cassetete em quem se aglomerasse por ali. Em seguida viu um dos companheiros pego pela camisa, com a testa sangrando abaixo do cabelo liso e desgrenhado. Ele lhe jogou um canudo de papel amassado e sujo e foi levado pelos repressores. Naquele momento um soldado segurou-lhe pelos cabelos e arrancando-lhe o papel amassado das mãos. Ela foi quase que arrastada pelos cabelos e jogada no camburão. O que continha aquele papel? Seria um documento? O que queriam que ela confessasse? Como poderia viver dali pra frente atravessada pela lança fumegante da traição. A única coisa que lhe passava pela cabeça era resistir, não dedurar ninguém.
Vou me poupar a mim e meus leitores de descrever o que Julia sofreu no DOPS. Todos nós estamos cansados de assistir violências no lixo televisivo. Mas não vejo noticias do que se passa na alma das pessoas violentadas. Tortura, acredito, é muito pior do que a morte! E não tem nenhuma justificativa para que seja praticada.
Quando finalmente foi solta, parecia qu tinha sido engolida por um buraco negro. Nunca mais foi à mesma. As palavras que alinhava para compor poesia fiicaram congeladas em seu coração. O corpo por muitos anos foi o túmulo e não templo do seu espírito.
Passada uma década daqueles acontecimentos, alguém a amou quando ela ainda tinha suas chagas abertas. Cuidou dela, deu-lhe filhos. Mas não havia em seu, não raro mutismo, aquela expectativa de outrora. Quando ficava absorta em seus pensamentos as pessoas que sabiam sua historia não mais perguntavam “onde ela está agora?” No entanto não resistiam a indagar:
- Quando teremos novas poesias, Julia? E ela respondia sempre:
- Não sei... “Minha alma saiu do corpo, foi embora e nunca mais voltou”...

PS – A frase em aspas foi colocada parafraseando Neusa Ladeira, que em Uma mulher sensível, respondeu no final de sua entrevista: ”quando se é torturado, a alma vai embora. Não volta nunca mais...”

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