sábado, 29 de dezembro de 2012

Feliz Ano Novo!


Maria J Fortuna


Continuo sonhando com a Paz!
Renovando os votos de que os passarinhos continuem cantando, as crianças brincando e que o ser humano se reconheça na simplicidade de onde vem a alegria. E que tenhamos  belas notícias, boas novas    grassando pelas avenidas, ruas e becos da alma, anunciando um período  de paz, e que reconheçamos que mudanças às vezes doem, mas são necessárias para nosso crescimento.
Que tenhamos consciência de que precisamos largar nossas antigas cascas e aceitemos o renovar  que tempo pode nos proporcionar,   mesmo na chegado do outono e inverno da vida. Afinal todas as estações são belas!
Que percebamos essa beleza na face imperfeita da humanidade, tão carente de amor!
Na verdade, eu gostaria que Israel fizesse as pazes com a Palestina e que os americanos se desarmassem de tudo, inclusive do capitalismo abusivo que, mesmo em crise, se expande pelo mundo! E que não mais existissem guerras.   Menos guerra, mais amor!
Que as mulheres deixem de ser apedrejadas e que os textos sagrados sejam bem interpretados. Que as pessoas, antes de julgar tão severeamente os outros, percebam a relatividade de todas as coisas e sintam que o amor e compaixão estão acima de qualquer Lei. E que, por isso,  não haja mais tanta barbárie sobre a face da Terra, que precisa se recompor das agressões de que tem sido vítima.  Que todos tenham essa consciência que destruindo o planeta, estaremos nos destruindo.
Menos matança de animais e mais preservação das espécies.
E que morra o preconceito, fruto da imaturidade ou de uma deseducação dada por nossos  antepassados, e alguns intolerantes que passaram a vida relegando seus irmãos, reconheçam finalmente, a Luz da verdade. E que essa Luz brilhe em nossas vidas e das próximas gerações.
Tomara que, neste novo ano, tenhamos mais consciência do Ser que habita em nosso centro em vez de negá-lO. E que paremos de culpar os outros pelos nossos insucessos.  Tomemos a responsabilidade por nossas vidas e ações.   Deixemos que o coração, de mãos dadas com a razão,  ocupe  lugar na existência de todos.
Mais amor e compaixão para que haja misericórdia e perdão. Mais fé e reconhecimento de todo amor que, com certeza, temos para dar.
Assim acredito que estaremos em PAZ em 2013!

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Nascido do Amor para o Amor





Vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos. E, porque vós sois filhos, enviou Deus ao nosso coração o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai" (Gl 4.4-6).


                                                                                                                                                                             Maria J Fortuna


Em todos os Natais, desde que me tornei adulta, em meio ao desenfreado consumo, não consigo deixar de pensar no carpinteiro Jesus de Nazareth, com as mãos calejadas, cabelos emaranhados, túnica salpicada pela serragem da madeira, cheiro de suor e âmbar, no Sermão da Montanha! Sinto nele o amor nascendo do Amor, que justifica todas as existências! Vejo-o como o centro de uma grande mandala composta por aqueles que, nesta vida, têm fome e sede de justiça, pelos que ainda creem, apesar de tudo, e por isso ainda têm esperança em si mesmos, no seu próprio crescimento nesse mundo conturbado em que vivemos. Vejo-o, principalmente, no Sermão da Montanha, ali em pé, de braços abertosE, túnica coberta de pó das estradas, falando para seus discípulos, incluindo Maria Madalena, e as pessoas que quiseram ouvi-lo, dizendo em alto e bom tom:

“Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus.”

Em minha concepção, é pobre quem se esvazia de si mesmo, para ser preenchido pela Graça. Quem percebe sua pequenez diante de Deus e do mundo. E como necessitamos disso, a cada minuto de nossa vida! Sem esse esvaziamento da arrogância de que sabemos tudo e todas as coisas de Deus e do mundo, a gente se encontra.

"Bem-aventurados os que choram porque serão consolados. "

Às vezes, pelas circunstâncias da própria vida ou porque somos fiéis a nossos princípios, choramos, mas se as lágrimas forem legitimas, seremos consolados. Se nos importamos com nós mesmos, com nosso desabrochar espiritual e com as pessoas que sofrem com as guerras - como tem acontecido na Síria e Palestina, - preconceitos, fome material e espiritual e morte de inocentes como ocorreu agora com vinte criancinhas de uma escola em Newtown nos Estados Unidos, nossas lágrimas podem ser sementes. Chorar quando erramos é uma porta aberta para o renascimento.

“Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra.”

Quem são os mansos? Quando nos tornaremos mansos? São aqueles que defendem a verdade pacificamente, mesmo que lhes custe a vida, e sabem que a mansidão não é passiva nem covarde, muito pelo contrário, é heroica, sábia e ativa. Como foi com Gandhi, Zumbi dos Palmares (mártir da luta pela Abolição da escravatura), Nelson Mandela, durante tantos anos preso injustamente por lutar pela independência do seu país, Pedro Casaldáliga, adepto da Teoria da Libertação. 

“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.”

Esses mesmos citados como mansos, tem fome e sede de justiça! Os que lutam por um mundo melhor. Os que, coerentes com seus princípios, ideais e ideologias, têm compaixão dos desamparados. Os que protestam contra uma sociedade capitalista, que mantém o povo viciado em consumo, os banqueiros que cobram altos juros do povo, os que são contra a recente proposta do governo em baixar o preço da energia elétrica, para não prejudicar a renda de suas ações. Protestam contra a manutenção da ignorância alienante do ser humano roubando verba para educação. Os que denunciam o envenenamento dos alimentos com agrotóxicos e produtos químicos que deixam o povo doente.

“Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”.

Estamos nos acostumando com a violência, vista nos principais jornais da TV. São tantos os assaltos e mortes, que acabamos por enxergar o assassinato de alguém como apenas mais um que se foi, que pena! Jesus teve compaixão por um ladrão a seu lado, que estava sofrendo o suplício da cruz com ele. No entanto, nossos presídios andam abarrotados de presos, vivendo em condições subumanas. Não há nenhuma condição para recuperar aqueles seres humanos. E deixamos de ser misericordiosos quando não somos atendidos em nossas expectativas por alguém em quem confiamos. Ficamos cheios de ódio e de ressentimento.

“Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus.”

Para mim puros de coração são os que não são hipócritas, um vício humano difundido, mas pouco confessado, claro! Os que não vivem de aparência e são simples, sem máscaras. O hipócrita está sempre julgando. Bem-aventurados a pureza daquele que ama de forma incondicional!
“Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.”

Os pacificadores são mansos de coração que procuram abrir seus próprios olhos e das pessoas em volta, para a inutilidade da violência. Aquela praticada nas ruas de nossas cidades, repletas de traficantes e usuários de drogas. Praticada também pelas TVs, que entram em nossas casas violentando os corações inocentes das crianças, com imagens terríveis e estressando os adultos com notícias horrendas como se só caos existisse em nossos dias. Os pacificadores reforçam o lado positivo da vida e nos enchem de legitima esperança de viver dias melhores.

“Bem-aventurados os que sofrem perseguição, por causa da justiça, porque deles é o reino dos Céus.”

Os que tentam viver cristãmente e são motivo de zombaria, os que são considerados marginais como negros pela cor de sua pele, homoafetivos, por terem seu afeto dirigido a alguém do mesmo sexo, ou religiosos que professam outra fé que não a nossa. Todos esses são perseguidos. E se a luta for pelo reconhecimento de restauração da dignidade do ser humano, é deles o reino dos céus.
“Bem-aventurado será quando vos insultarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o género de calúnias contra vós, por Minha causa.”
Nosso mundo atual encontra-se mergulhado na descrença de Deus. A dúvida, que impulsiona o ser humano em direção à fé, está levando grande número de pessoas ao ceticismo. O cristão tem que ser duplamente corajoso para viver a doutrina de Cristo. Já era bem difícil na antiguidade. Há grande carência de fé, em todo planeta. Alguns cientistas negam o transcender humano e acham que pode dar todas as respostas .É muitas vezes ridularizado o que se encontra em estado de fé em Cristo. Em alguns lugares é até perigoso dizer que se é cristão. A lista de mártires é muito grande por esse motivo.
 
O discurso de Jesus é atual nos dias de hoje. A autoridade do quem fala tem, em si memo, a verdade viva que pode ser ouvida em nossos dias, sem que possa ser alterada uma virgula! Esse é o Natal a ser comemorado: o do carpinteiro Jesus, em seu corpo humano no divino e suas palavras de eterna luz!Coloquemos Papai Noel em seu devido lugar. Como alegre bom velhinho que presenteia crianças. Que seja celebrado o verdadeiro aniversariante, mesmo que digam que ele não nasceu em dezembro.


quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O primeiro homem

                                                                                                                                                                       Maria J Fortuna
Havia na alma de Tercia um buraco sem ponte. Um vácuo sem luz. Uma dor sem alívio, nem esperança. Embora ela dissimulasse muito bem.
Negava-se a acreditar que existisse um homem com jeito de cavaleiro, asas de águia e cheiro de liberdade. Alguém com quem provocasse lembranças como música boa e tivesse o dom de iluminar, como mulher, seus relacionamentos. Que a tivesse amparado e protegido em seus primeiros passos. Alguém poderoso, repleto de sol, pronto a dar-lhe um abraço apertado, gratuitamente, simplesmente porque a amava. Que teria caminhado com ela nos campos de girassol. Com quem pudesse ter lembrança boa de, quando pequenina, ter subido em seus ombros fortes, quando quisesse apanhar uma fruta que amadurecera no alto da copa da árvore. Alguém que lhe tivesse dito seu amor com um simples sorriso e que lhe ter dirigido ternos olhares. E que, quando ela, em estado de adolescência, tivesse feito questão de acompanhá-la na sala dos espelhos, no momento de encarar a si mesma, buscando identidade. Alguém que não lhe provocasse medo todas as vezes que se aproximasse dela.
Mas como isso não ocorreu, ela torceu as raízes daquele amor frustrado na infância de forma que, tal como planta sufocada, não conseguiria crescer como devia. Pior, estendeu sua ansiedade e angústia aos que vieram depois. Por causa disso, nunca se sentiu bem ao contemplar as fotos do seu primeiro amor. E nem de qualquer dos homens com quem se lhe assemelhassem. E nunca se sentiu bem quando falavam sobre ele, com seu jeito rancoroso, autoritário e distante. Porém, os véus que colocava em cima daquela imagem, no decorrer de sua vida, não foram bastante para esconder o grande buraco sem ponte que se criou dentro dela. Era uma equação sem resultado. Em algum momento de sua vida ele a tinha traído e o espelho se partido. Aquele sentimento ruim de quebra, de perda, parecia uma veste que cresceu grudada a seu corpo, delineando lhe, muito a contragosto, suas formas. Não havia bálsamo que a aliviasse do mal estar, nem remédio para sua cura.
A imagem do primeiro homem de sua vida era tão ameaçadoramente imensa, que se projetava em todos os seus amantes, confundindo-se com eles, impelindo-a a exorcizá-los antes que o coração a traísse. Exceto quando suas mucosas sensíveis os procuravam para uma breve relação, puramente instintiva. Apenas para alivio de tensões, como se naquela situação de deserto, houvesse apenas um tipo de flor que destila água que nunca sacia. Assim não correria o risco de entregar-se de verdade ao desconhecido... E era tudo o quanto aspirava sua natureza feminina.
Teria que conviver com aquele nó na garganta, como se observasse o mar sem poder atirar-se nele. Um estado de aspiração em que tornasse as uvas sempre verdes... Com dificuldade de engolir as pétalas indigestas de sua própria vida que dele veio. E que ele lh´as havia oferecido, embebidas no fel da desconfiança. Não era isso que ele lhe fez crer? Que os homens não prestam e querem apenas copular com a fêmea? E que embaixo de um cajueiro ela foi feita apenas por impulso de um amor carnal? Como poderia sequer imaginar que poderia surgir, dentre os homens, algum espécie raro que a ajudasse a atravessar o buraco negro que habitava sua alma? Qual deles seria a ponte que poderia resgatá-la, fazê-la passar para outro lado, onde poderia respirar amar, viver e procriar? Ou romancearia para sempre um arremedo de homem que de nada tinha a ver com a realidade? Talvez tolerasse um D. Quixote, cavaleiro da triste figura... Com o qual não precisaria se armar, pois a luta quixotesca envolvia apenas moinhos de vento... E Dulcinéia era para ele, sempre bela! Por tudo isso ficou claro para ela, que seu homem ideal era aquele que ficasse bem distante... Assim teria o gosto de sofrer por ele.
Mas gostava de seduzir, isso sim, seduzir! Dirigir aos homens velados olhares de fogo, cheios de promessa. Mas... Se houvesse correspondência, ameaça de toque amoroso, ela daria um jeito de sair devagarinho... De outra feita fugiria mais facilmente se o toque fosse ousado, inesperado, transvestido de indecente. Seria bem mais fácil escapar disso. Negar-se-ia a entrar no jogo, procurando saída através da ética, moral e bons costumes, única herança paterna.
Nenhum homem remendaria sua alma de forma que a fizesse saltar sobre aquele abismo. Nenhum merecia isso! O jeito era contorná-lo. Ver-se livre daquela orfandade eterna. Sempre cuidando para que não deixasse transparecer a sombra daquele primeiro amor unilateral. Aceitar ter um só lado. Um só destino. Desistir de vez da ideia romântica de completude. Deixar tudo muito claro aos olhos do coração. Assim não trairia a si mesma, para que não houvesse engano ao prosseguir...

sábado, 1 de dezembro de 2012

Rosa Flor


 Foto de Florbela Espanca
 
 
 
 
                                                                     Maria J Fortuna
 
 
Amanheceu em plena consciência do seu estado de rosa. Sabia que, sozinha, não podia tocar com sua beleza todos que estavam a seu redor. E que nem todos iriam apreciá-la ou embriagar-se com o perfume que se desprendia dela. Talvez por causa do poder de sua fragilidade, revelada através da maciez e cor de suas pétalas.
Cresceu assim, desde botão, até aquele momento em que, de tanto se abrir para o mundo, deixava cair várias das suas sementes. Mas só algumas deram flores. Seu nome era Maria. Não podia se dizer imaculada, como a mãe de um ser divino, mas havia se purificado através da renovação dos seus momentos, quer de dor ou alegria, sempre vivida como derradeiros.
- Afinal vou mesmo morrer amanhã, é o que importa, dizia ela.
Sabia-se Maria, rosa. Maria Rosa. Fazia parte da sua transparente natureza de flor. No entanto, costumava cuidar para que seus espinhos não magoassem ou ferissem ninguém, mesmo quando provocada.
Fora criada com grandes pinceladas de indiferença na alma. Isso porque floresceu inesperadamente. Nem os pais, nem ninguém percebiam seu talento para expressar com palavras, escritas e mudas, as estações que aconteciam dentro dela. Silêncio é coisa de flor... Afinal, escutava sempre calada, que viera ao mundo por teimosia e que não era esperada. Mas o que importava sua origem, sabendo-se vencedora na luta pela sobrevivência? Por isso tinha o direito de assistir vários pores-de-sol, várias outras primaveras. Tinha o direito de ser flor.
- Menina estranha, essa Rosa... Ponderava a professora de matemática. Não há nada que a faça aprender álgebra!
- Trata-se de um paradoxo, falava a professora de português. Ela escreve poesias...
Álgebra, poesia... Desafio! Talvez fosse a mesma dificuldade que sentia ao tentar unir realidade ao sonho, sem conseguir costurar uma coisa na outra. Nem saber onde havia perdido o fio da meada. Para ela, a verdade estava nas coisas sonhadas. Apesar de todos os pesadelos que se arriscava a ter em estado de sono. Pesadelo faz parte, pensava... E continuava a sentir, através de suas pétalas, tudo o quanto podia alcançar na procura da beleza!
Um dia, a moça mergulhou por longo tempo em seu mundo onírico. Então o doutor responsável pelo seu tratamento disse em alto e bom tom:
- Longe de mim querer “curar” Rosa! Ela faz parte da natureza e nela exala seu perfume. Não se pode curar um poeta!
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sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Olhar inocente

                                  Obra de Oscar Pereira da Silva
 

Maria J Fortuna
                    Não havia dúvidas de que o motivo único de sua aflição, era a lembrança do olhar inocente que brotou da moça, como um lírio atrevido no meio do pantanal, naquela terça feira. Foi quando ela estava em seus braços, num motel da Lapa. Deu por isso naquele dia, quando a viu nua, estendida sobre a cama, contemplando com aquele olhar perfumado, seu corpo cansado e recém-desperto. Com certeza aquele jeito de olhar, como se tivesse, de repente, descobrindo um novo mundo, passou a incomodá-lo em suas visitas de terça feira. De um dia pra outro, aquela situação insólita havia acontecido. A moça, com os imensos olhos escuros e aveludados, passou a observá-lo de forma diferente e, também, à distância, até onde sua vista o alcançava, na janela do casarão, num café da esquina, dentro do carro ou durante o tempo em que ele devorava um prato feito no bar da frente. Igualmente era perturbadora aquela ternura, quase maternal, quando o acolhia nos seios floridos, com mais vagar, observando cada detalhe do seu corpo. E em cada gesto macio, aquele olhar vindo não se sabia de onde, acompanhava-lhe o sorriso aflorando-lhe nos lábios. Tudo era flor e isso era muito perturbador para ele! Aqueles olhos traziam algo além da sensualidade ou da expectativa de uma recompensa. E estava nela presente quando o observa passando colônia nos braços e xampu nos cabelos, depois de um banho juntos. E continuou muito mais ainda no encontro seguinte. Ele se encontrava agora completamente desconcertado! Não podia negar que buscava ali os prazeres que uma mulher da vida podia lhe proporcionar, mas também não negava que aquela jovem mulher estava lhe passando uma intrigante mensagem através de um olhar renovado. Sabia que havia se tornado incômoda sua presença ali, na busca de prazeres carnais. Mas, afinal, pensava em estar conformado de que seria apenas isso que lhe oferecia o destino, em seu tempo de inverno. Mas não havia nada mais assustador, para ele, do que sentir algo, além disso. Ali não era ambiente para se deixar nascer uma flor! Isso só podia aumentar feridas. As dele, as dela... E disso entendia muito bem. No seu caso, era só jogar nelas um bálsamo, de vez em quando, deixando jorrar sua tensão num orgasmo, e tudo ficaria resolvido. Mas a presença perturbadora do olhar da moça prometia muito mais do que isso: Promessa totalmente inadequada pela sua inocência...
                    Devido a insistência do fato, restava-lhe reconhecer que aquela ternura tinha vindo com as certezas da alma! Só podia ser. Além de assustado, ficou furioso com isso! Aquela era uma nova roupagem para seus sentimentos que clamavam por cuidado e isso aumentava sua irritação! Pior que não havia jeito de negar que cada um dos dedos de suas pesadas e grosseiras mãos, havia sido beijado por ela, olho no olho... Mas faria tudo para proteger o coração daquele sentimento velado pelo olhar, inesperado e inoportuno. Como é difícil lidar com a ternura dos outros, pensou.
                   Decidiu, enfim, que cada um deles ficaria em seu próprio mundo e seguiria seu próprio destino. Ele com suas lembranças e a velha sensação de que nunca havia amado de verdade, atolado em seus livros, e ela continuaria oferecendo seu jovem corpo para os que podiam garantir-lhe, por alguns dias, a sobrevivência. Afinal, as linguagens eram bem diferentes... Os códigos eram outros... Só não podia deixar-se olhar por ela...
                     Era isso! Mas por que queria sair dali correndo tanto, sem rumo certo? Como deixar assim, de forma tão irresponsável, quem tantas vezes embalou carinhosamente seu corpo cansado pela marcha no tempo? Como foi permitindo que aquilo lhe acontecesse? Sentiu-se covarde, hipócrita, egoísta, mas também frágil, pequeno, carente... Uma formiguinha diante das tramas do mundo... O conflito estava ali, roendo-lhe os pensamentos, despetalando a flor do coração. Depois disso não teve mais sossego! Teve que confessar para si mesmo que aquele olhar inocente estava para sempre dentro dele, dizendo de forma completamente absurda o que ele não queria ouvir. Ou seja, que ela o amava e que, por isso, ele tinha que cuidar daquele amor.
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quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O encanto do perecível




                                                                                                                                                      Maria J Fortuna
 

Eu estava em lágrimas, curtindo o fim de um relacionamento, quando alguém chegou perto de mim e me segredou: “- Olha só, as coisas só são boas porque elas acabam...” Passei, então, dias processando essa valiosíssima informação. Fiquei, então, dividida: Uma parte do meu ser refletia sobre o assunto, mas a face exuberante da minha personalidade dizia-me justamente o contrário, ou seja: no fim é onde existe maior tristeza! Onde está o sentido da vida tão cheia de perdas? Essa divisão interna não me deixava descansar um só momento. O apego ao passado, à lembrança sensorial de tudo o quanto eu tinha vivido, não me permitiam domar o coração frente à negação da perda... Tudo parecia com o velho ditado: “Foi água na fervura!” Isso porque o que eu sentia ainda estava bem longe de ser dissolvido, quiçá fazer-me chegar à conclusão de que tudo tinha sido bom porque acabou. A memória ainda me enviava um volume enorme de imagens de um passado recente, acentuando as cores das lembranças que mais me davam prazer, agora transformado em um sombrio coquetel de prazer e dor. E a insistente memória dos fatos passados estava congelando seu conteúdo, não deixando a vida fluir... Não minha vinha à cabeça de que é nesse movimento que mora a beleza de ser e estar no mundo!
Entrei em ebulição! Eu estava ora em chamas, ora num vazio esquisito, gelado, sem rumo. E por mais profanos que fossem meus pensamentos, lembrava-me das palavras de Jesus: “Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só, mas se morrer dá muito fruto.” Mas que fruto eu poderia tirar daquela dor, negando-me a essa transformação que implicava aceitar o fim, a morte daquele relacionamento? Sim, eu sabia que teria que morrer para aquela dor e entregar-me àquela alquimia. Por outro lado, se eu me apropriasse de uma linda borboleta azul, prendendo-a numa campânula de vidro para deleitar-me com sua beleza, fatalmente apressaria sua morte. E foi justamente essa ansiedade, tão cheia de medo e pressa, que havia me separado do ser amado. Medo de perder, pressa em segurar. Um dia, a campânula não resistiu e se quebrou. Então, a borboleta se foi... Ela que tinha sido lagarta e casulo. Talvez não tivesse, de repente, consciência de que já era borboleta para encarar a dor do existir. Até a consciência tem movimento! Então, havia chegado à conclusão de que congelar momentos, separar ganhos de perdas, é algo impossível!
E, assim, pensei no que seria melhor para minorar o sofrimento. No caso, senti que a única saída seria mergulhar naquela dor o mais que eu pudesse. Até a última gota! Viver o luto até a ressurreição! Foi quando a esperança retornou trazendo um pouco de sua luz no final do túnel.
Uma vez me certificando de que tudo está em movimento - até a imagem que tenho de Deus - fui conseguindo descongelar, aos poucos, o passado. Senti que a memória com suas lembranças, passou a receber novas imagens em ondas, que foram se sobrepondo umas às outras à medida que novos fatos foram acontecendo. Tudo em cima da fé de que é enorme o potencial humano para amar, o que representa um consolo, porque o amor se renova. Isso me lembra da dança de Zorba, o grego! Quanto mais dor, mais dança! Mais movimento! Assim, consegui dançar aquela dor lançando flores ao abismo da perda inevitável, ligada à própria vida. E concordei com o que disse o amigo: “As coisas só são boas porque acabam...”

 

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Espaços vazios

         Sobrados de São Luis como a casa do meu avô    
                                                                                 
 
 
 
 
Maria J Fortuna
 
 

Na memória, moram os diversos lugares por onde vivemos. Gosto de caminhar pelos espaços vazios das casas onde eu, minha família ou amigos íntimos habitavam. Ou seja, moradas em que vivi e imagino que estejam agora fisicamente vazias. No meu “passeio” pelas ruas e becos do passado, ignoro as pessoas que depois entraram e se estabeleceram por lá. A começar pela da casa do meu avô, com uma escadaria da qual pulei um dia e a lâmina de ferro do portão afundou no meu dedo, partindo-me o anel, quando eu tinha quatro anos de idade, em São Luís do Maranhão. Um sobrado de tábuas pretas e brancas onde me equilibrei para dar os primeiros passos. Percorro a grande sala, a mesa que uma vez ocultou, sob seu pedestal de madeira, uma aranha caranguejeira. A sala de refeições, o quarto das tias solteiras, onde havia crucifixos pendurados em cada uma das suas quatro camas. Aqueles mesmos de onde arranquei o Cristo crucificado e o coloquei na cama de bonecas. Os armários de roupa que eram cobertos por lençóis quando relampejava. O grande salão de festas com um piano, o quarto de hóspede sempre trancado e o quarto de despejo onde, após a morte do meu avô, eu, calçando sua botina, vi de lá sair uma barata cascuda. A cozinha com forno a carvão e grandes tachos de cobre. Vejo as gamelas de madeira, onde eram feitos doces, principalmente os de goiaba, fruto que caía aos borbotões da goiabeira no grande quintal. Assim como as carambolas. Percorro o jardim carregado de angélicas que perfumavam a casa, principalmente após as 18 horas, quando do rádio a gente ouvia o Ângelus e rezava a Ave-Maria. Até hoje sinto grande nostalgia nessa hora! Lá embaixo, na lavanderia cheia de pedras brancas, jabotis de todos os tamanhos passeavam no lodo e mergulhavam no tanque raso. Uma gata parideira escondia os filhotes no sótão da casa. Sim, sempre vou até lá em pensamento, apesar de não restar mais ninguém dos meus por ali.
Estou certa de que cada um desses espaços em nossa memória oculta períodos da vida, onde a ternura refrigera prazerosamente nossa alma. Essas lembranças ecoam no coração como doce sinfonia. O segundo espaço vazio que costumo frequentar era o da minha amiga francesa Solange de Marbaix, em São Paulo. Todas as vezes que eu ía visitá-la, ao abrir a porta do elevador, sentia o perfume exalado das rosas sobre o aparador junto a porta, dando-me boas vindas. Aquele odor delicioso era reforçado pelos jasmins de sua varanda. Ninguém acreditava que ali, no 14º andar do prédio, havia um jardim suspenso! Em suas viagens pelo sul do Brasil, minha amiga colhia aqui e ali, pequenas sementes e mudas, que levava e plantava em seus canteiros. Tinha rosas, cravos, buganvílias, margaridas, etc
                 Então, em minha viagem pelos espaços vazios, percorro novamente o apartamento de Solange no bairro Campos Elíseos. Por mais que esteja agora habitado, para mim, sem minha amiga, estará sempre vazio. Chegando ao jardim suspenso que ela tanto amava, vejo o grande lagarto de ferro, segurando a porta que refletia em seu vidro a beleza do jardim. Contemplo na sala o velho órgão, vejo o teclado mudo, os livros, as fitas de vídeo ainda em VHS, o tapete persa estendido no chão onde o gato Xuxu, Sagrado da Birmânia, adorava se estender preguiçosamente. Observo os objetos de prata, os cristais que ela dizia pertencer aos bons tempos das vacas gordas, a grande mesa de vidro onde ela trabalhava horas a fio, a salinha-biblioteca onde, na máquina de escrever e depois no computador, ela escreveu o livro sobre Maomé, esse desconhecido, e os Cadernos Sufis. No quarto vazio, a pequena cama cercada por inúmeros armários e uma grande penteadeira. As cortinas em desalinho. Pelo tamanho do quarto, a cama ficava tão pequena que ela dizia ser o quarto de Catarina de Médici. Não me recordo o que queria dizer com isso. Não gosto de contemplar este pedaço da casa, onde ela sofreu dores atrozes de um câncer que a levou de forma fulminante! Ao lado, o quarto de hóspede, com sua imensa janela para a paisagem cinza da cidade. Caminhando por lá chego a ver, em cima da cama, toalhas, sabonete e um ramo de miosótis ou de outra plantinha delicada esperando-me para um banho repousante. E um presentinho na mesa de cabeceira, ao lado de um copo com botões de hibiscus, que no dia seguinte se abriam e enchiam o quarto de luz!
                     Ali eu descansava da viagem, usando sua ducha francesa. E, já pronta, aparecia na sala, onde me aguardava a mesa com toalha de linho branco, um bom vinho e alguns quitutes, dentre eles, deliciosos chocolates. Sem falar da torta de nozes alemã, que ela sabia que eu apreciava! Parei diante do grande sofá de veludo azul-marinho, onde começávamos um papo gostoso em preparação para o grande sarau que viria! O sarau consistia em mostra de poesias, a maioria persas, projetos para suas palestras sobre Sufismo, algum filme interessante sobre grandes balés ou óperas, conversa sobre assuntos esotéricos e depois de tudo, sonolentas, nos retirávamos para nossos quartos. Como não voltar de vez em quando àquele endereço?
Acredito que, quando passamos para outra dimensão da vida, volta e meia visitamos os lugares onde fomos felizes. Se eu fosse ocupar os espaços vazios dos mais de 30 lugares em que morei em São Luís, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, caminhando através da memória, teria a mente ocupada por muito tempo. Mas muitos me trouxeram sofrimento... Esses dois não. Fui muito feliz. São espaços vazios cheios de lembranças que, em especial, gosto de retornar cada vez que a saudade me sufoca. E ainda bem que, nas tensões do dia a dia, tenho para onde voltar...



                                                         Solange de Marbaix e seu gato Xuxú no jardim suspenso


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sábado, 3 de novembro de 2012

O bode Simão

Desconheço o autor da foto

Maria J Fortuna

Eu tinha seis anos incompletos quando vi bode Simão pela primeira vez. Um homem com cara de bonzinho havia amarrado a corda que circulava o pescoço do bicho, num poste, perto da Pirâmide de Beckham, monumento que fica à Beira-mar, em São Luís do Maranhão, onde eu morava na época.

A cara do animal sempre havia me intrigado. Ele parecia com aqueles senhores sérios, dignos de muito respeito. Ainda por cima, tinha barba como o vovô da padaria. Qualquer maltrato àquele bicho sisudo, para mim, seria uma afronta, um desrespeito. O olhar dele me intrigava... Parecia que queria me segredar alguma coisa... Era como se tivesse falando dentro da minha cabecinha:  Me respeite! Me respeite!

- Esse bode quer fazer amizade comigo, pensava eu. Como sempre fui uma criança que se sentia muito só, achei que devia ser amiga e confidente do bode. Afinal sua linguagem se resumia num béééé, que podia dizer muita coisa, só que ninguém compreendia. Parecia o som de quem estava se queixando de alguma coisa.... Seria absurdo desrespeitar aquele bode, pensava eu. Seu jeito lento de comer capim devia ser de bicho velhinho...

Bode Simão, nome dado por mim, passou a fazer parte do meu universo. Era como se ele conhecesse meus segredos e eu os dele, daquele animal quase silencioso que eu visitava todos os dias. Certa vez criei coragem e afaguei-lhe o pelo, que era ao mesmo tempo macio e áspero. A coisa estava ficando séria, porque a amizade estava se estreitando... Ele tinha um odor meio forte, mas não desagradável para mim, sua amiga. Passei a ficar muito preocupada quando chovia, porque o bode podia estar dormindo na chuva e sentindo frio, apesar do calor do nordeste. Ou alguém podia até bater nele, sendo cruel, chutando-o ou jogando-lhe pedras, como infelizmente eu assistia muitas vezes em relação aos gatos, que corriam no muro do quintal.

Havia qualquer coisa de telepático na minha convivência com Simão. A gente se ligava através do pensamento e ninguém sabia o segredo de nossa comunicação.

Era só o caboclo amarrar a corda do pescoço do amigão no poste que eu aparecia na janela de casa, com minha cabeça cheia de cachinhos, esperando oportunidade para me aproximar novamente do bode ancião. Aí começava o diálogo mental:

- Quantos anos tu tens? Indagava-lhe.

- Não sei bem, mas já estou velho... Imaginava a resposta.

- Teu dono é bonzinho pra ti?

- Às vezes...

- Tu tens pai, mãe e irmãos?

- Não sei por onde andam...

- Se alguém te maltratar tu me falas.

- Está bem... Eu falo.

Numa destas ocasiões, eu subi em dois barris que estavam ali jogados. Coloquei um pé num barril e outro pé no outro. E tentei me equilibrar. Mas eis que os barris estavam vazios e cada um rolou numa direção, o que me fez desequilibrar e cair, em cheio,  no chão de terra!  Senti a dor do tombo nos ossos da bacia e fui chorar debruçada no corpo do bode. Só pelo calorzinho daqueles pelos macios e sentindo sua respiração, fui me acalmando... Parei de chorar e limpei os olhos. A dor passou e tudo ficou bem. Olhei para o amigo, que me fitava com aqueles olhos castanhos e mansos e disse:

- Obrigada, viu?

- De nada, espero que fiques bem, imaginei a resposta do amigo.

Num dia claro, cheio daquelas nuvens que parecem carneirinhos, saí para encontrar com o amigo. Quando cheguei percebi que ele estava solto. A corda se arrastava pelo chão. Então me aproximei curiosa e confiante em nossa intimidade. Afaguei-lhe a cabeça como sempre, conversamos um pouquinho, não me lembro de o que, quando ouvi a voz de minha mãe me chamando.

- Fica aí e não foge, viu? Disse dando-lhe costas para ir em direção a entrada de minha casa.  Dei uma olhadinha para trás e vi  o bode Simão, abaixando a cabeça. Começou então a dar uma espécie de ré, o que eu interpretei como timidez. Deixei pra lá e segui meu caminho. Lembro-me direitinho da enorme pancada no traseiro que me fez cair esborrachada no chão tão duro, quanto os chifres daquele bode.  Entre revolta e decepção, vi que o considerado então amigo, havia me traído pelas costas, e com isto veio o fim da nossa grande amizade!

Troquei de mal e nunca mais conversei com ele.   Que marrada inesquecível!

 

sábado, 27 de outubro de 2012

Refletir, criar...

 Foto de Bruno J P Teixeira



Maria J Fortuna

Segurou o pincel com uma das mãos como se pegasse as mãos da própria alma. A outra estava apoiada na prancheta, talvez para ajudar a conter a estranheza que vinha de dentro. Diante da tela, um primeiro movimento de inspiração numa pincelada azul. Enchendo-se de coragem havia dado o primeiro passo rumo ao desconhecido.
Depois daquela primeira pincelada, começou a longa aventura do coração. No azul, o branco se fizera presente, projetando seus fantasmas no movimento das nuvens. Outras cores começaram a nascer nos horizontes da tela. Apertando a bisnaga do cinza, surgiram as nuances dos seus dias de bruma. O Cinza claro e escuro em tons azulados se fez presente, sugerindo um céu de outono. Mas pincelou alguns raios de amarelo e laranja, para quebrar-lhe a nostalgia. Sentiu o rosa daquele momento pedindo-lhe passagem. Tudo aquilo era quase uma sinfonia! E assim a tela foi se enchendo das cores do pôr- do-sol. Por fim, alguns pássaros surgiram na ponta do pincel molhado de branco e voavam pelo espaço do firmamento recém-criado. Sorriu na dúvida de que, sozinha, estava realizando aquela viagem... Mas era verdade. Aquele era um ato tão solitário quanto o ato de nascer, sozinha, na presença do mundo. Mas aquele céu era mãe dos pássaros que não eram solitários, porque voavam juntos na mesma desconhecida direção.
Contemplou sua obra e percebeu quanto era longo o caminho para que beirasse a santa loucura de Van Gogh, a transparência de Renoir, os movimentos dançantes de Degas, a vida borbulhante no colorido de Toulouse Lautrec. Mas sua rota teria que ser única e reconhecida, a cada passo da criação, como eterno ensaio. E isso dependia tão somente dela, do seu suor e do exercício da técnica adquirida com o passar dos anos. Sabia que por diversas vezes erraria o caminho, pois o pincel não conseguia expressar o que realmente vinha de dentro. O mais importante era ser criança em espirito, capaz de transformar-se um dia em elefante, outro em borboleta. E era disso que precisava. A angústia morava no pouco tempo que lhe restava em adquirir a destreza necessária até que sua mão se tornasse leve como pluma, e ela livre por sobre os trilhos.
Embora um sentimento de incompletude tomasse conta do seu ser, não havia dúvida de que os cordões da fantasia haviam-se desabotoados. Sabia que não era tão livre quanto aquelas aves no pôr- do-sol recém-criado colorindo o céu com suas asas, mas aquilo era só um princípio. E uma vez chegando a ele, não haveria retorno. Mesmo que a tela fosse manchada com seus borrões impetuosos, na procura de uma estética na projeção criada, sua alma viria sempre junto dali por diante. Foi o que aconteceu. Ali estava a semente brotada pela transpiração, que revelava que aquele olhar de coisas velhas fora vencido. A semente do novo estava plantada e dali por diante teria que ter coragem e simplicidade.
A terra transpirou, realizando-se em seu destino a partir daquela primeira semente. Foi naquele dia em que a forma saiu da fôrma e as cores do coração.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

A visita do amor


 

 

 

Maria J Fortuna

 

Seu corpo estava prostrado no sono das velhas estrelas quando o amor chegou. Não tinha forma definida.  Chamava-se assim, era o que bastava. Não interessava o corpo que o conduzia. Estava vestido de rosa, mas em seus afagos, ela sentia a presença do vermelho e isso também bastava ao seu corpo de setenta anos. Não era santo como o amor de Jesus, mas era tão humano e carente quanto ela própria. Tão repleto de estigmas quanto aqueles que marcaram seu próprio coração. Não era tão azul como a sinfonia de Chopin, mas tão claro e simples e alegre quanto o trenzinho caipira de Villas Lobo. Tão receptivo ao carinho quanto à sensitiva dos campos.
Chegou assim tão devagar e apalpando como cego, seu corpo entregue ás manias do tempo. Aquela em especial de amassar as folhas, animais e pessoas e torná-las enrugadas, mas deixando um perfume de boas lembranças espraiadas nas mentes cansadas, como refrigério.  O importante é que o amor também tinha corpo e dentro de si mesmo desejava aquele encontro tanto quanto ela própria. Não fosse o medo não teria se ausentado durante tanto tempo... O medo é um polvo transparente que aperta o coração com seus tentáculos impedindo a liberdade do ser no ser.
O amor sondou sua pele com caricia cuidadosa como o contato dos primeiros raios de sol da manhã.  E, aos poucos, foi-se manifestando de forma ousada, como tanto ela desejava e não sabia. Talvez soubesse, mas fechava as portas aos sentidos, num exercício lento e doloroso, achando que dessa forma poderia privar-se do vexame de amar daquela idade. Então seu arfar constante no peito, deixou escapar um monte de borboletas azuis. Sentia-se desejar sendo desejada de forma tão gratuita quanto  criança diante de algodão doce, no primeiro dia de visita ao circo. Tão lúdico aquele momento, tão perfumado quanto os mais saborosos quitutes da vida. E retribuiu todas às caricias do amor.
Sua pele transformou-se no pêssego dos seus primeiros anos. Seus seios tornaram-se cheios como dois frutos sazonados e suculentos, não importando há quanto tempo amadureciam na árvore. Sua respiração acelerava enquanto o calor daquelas mãos amorosas despertavam todos os seus fios de cabelo, seu sexo e os sonhos soterrados na dor do preconceito.  O tempo espreguiçou-se dentro de si mesmo e os relógios pararam. E ela amou o amor que, beijando-lhe a boca, soprou-lhe segredos. Um deles é que, além de atemporal, seu nome em todas as formas de manifestação, é sempre o mesmo: amor! E que ele é uma criança simples e despojada, tendo como única alegria o aconchego, de corpo e alma, daquele que ama. Não importa os machucados do tempo.  E que não deixa marcas dolorosas, só à lembrança de doces prazeres.
Não foi preciso dizer mais nada até que, em risos e gemidos, fundiram- se naquela noite...  E seu corpo, tão cansado, prostrado no sono das estrelas despertou, e a deixou assim: feliz e agradecida. Mesmo depois que o amor foi embora...

 

 

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Para quem mora no Rio de Janeiro

 
 
 
 
 
 

Nise da Silveira


 

 

Na década de 70 foi a primeira vez em que ouvi falar a respeito de Nise da Silveira. Minha amiga atriz e bailarina, Jacqueline Cavalcanti, que já está do outro lado da vida, admirava imensamente essa psiquiatra que foi um marco no tratamento de doenças mentais. Nise mergulhou fundo na alma dos seus pacientes e descobriu tesouros imensuráveis! Muito deles revelaram-se grandes artistas plásticos e a arte terapia ganhou corpo, quando o tratamento era à base de insulina e eletrochoques.
Tenho acanhamento em dizer que trabalhei nove anos na Psiquiatria do PAM – Padre Eustáquio,  em Belo Horizonte e,  pouquíssimas vezes,  Nise foi mencionada pela equipe médica, de enfermagem e serviço social, como exemplo de mulher revolucionária e pioneira no tratamento de pacientes, muito deles esquizofrênicos. Poucas vezes ouvi falar sobre o Museu do Inconsciente, onde suas obras estão expostas aqui no Rio de Janeiro.
Mas artistas são artistas e, através do fio luminoso da sensibilidade,  descobrem as expressões da alma e tem um respeito,  quase religioso, por figuras como Emygdio de Barros e Raphael Domingues como enorme gratidão por essa mulher extraordinária, que humanizou os manicômios onde trabalhou. Os artistas se reconhecem.
 
 
 Um olhar atento e carinhoso enquanto seu paciente trabalha
 

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Emydgio de Barros e Raphael Domingues


 

Visitei no Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro, uma fantástica  exposição que reúne cem obras de dois grandes artistas:  Raphael Domingues (1912-1979) desenhos e Emygdio de Barros (1895-1986) pintura. Ambos diagnosticados como portadores de esquizofrenia. A exposição  homenageou a memória da psiquiatra Nise da Silveira que criou o ateliê de artes do Setor de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação, mantido no Centro Psiquiátrico Nacional hoje Instituto Municipal, lutou bravamente contra os  procedimentos agressivos aplicados nos anos 1940 em doentes mentais, como lobotomia, choque elétrico e injeções de insulina.
Em seu ensaio sobre a obra de Emygdio de Barros, o curador Rodrigo Naves, após examinar as obra do pintor, considera alguma semelhança em relação às obras de Matisse, Munch.   “Sua formação num contexto social hostil paradoxalmente o levou a buscar harmonia por meio de uma intensidade cromática, não ilusionista, como a dos expressionistas.” Naves cita como exemplo o contraste entre a paz interior de um homem trabalhando em seu ateliê e a paisagem em movimento desestabilizador vista através da janela numa de suas telas.
 
 

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