segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

As várias mortes na vida



Maria J Fortuna

 
Ele era o xodó da família. Alegre, simpático, sedutor quando jovem.  Com a idade, não deixou de ser carismático. Sua presença melhorava o humor das pessoas. O jeito com que caricaturava diversos tipos e se expressava com caretas para alegrar a plateia, tornava-o irresistível, sobretudo com as mulheres. Foi o primeiro rebento lá de casa. Parto difícil, infância nada fácil, adolescência mais complicada ainda, mas camuflava sua tristeza com a genial  arte de transformar a  realidade mais dura, em objeto de riso. E acabava deixando todo mundo encantado!  Dava sempre a pincelada certa naquela hora errada em que fazia suas falcatruas e acabava por transformar nossa disposição para a ira em ocasião de perdão. Para mim, era o irmão engraçado que me chamava, quando criança, de “linda boneca” e com quem nunca tive um atrito sequer. Com isso acabei, bem jovenzinha, criando um dos seus filhos. Não havia rosto que não fosse desanuviado pela sua disposição em fazer rir. Sinto que lá no céu, ele está se desculpando dessa forma. Sobretudo pedindo graciosamente para  Santo Antônio, de quem era devoto, interceder por ele na hora do julgamento.

A morte de José Roberto não teve nada de dramático. Nem tinha cabimento. Foi-se dormindo. Ele estava com um leve sorriso nos lábios e não deu trabalho a ninguém.  Não havia sinais de luta. Parecia que iria acordar a qualquer momento para contar uma piada, com aquele jeito de olhar torto e seu modo  leve e divertido de ser. Essa foi mais uma perda de um ente querido que me conduziu à reflexão sobre a morte e as mortes que acontecem em nossas vidas.

 O dia em que eu for avó, contarei para meus netos que pessoas são como astros. Umas partem como cometas, outras são estrelas cadentes, e há ainda aquelas que somem e aparecem do nada.  Mas não é necessariamente a morte que as leva de nós.  A morte de uma amizade é como estrela cadente. Perda irreversível em vida. A pessoa desaparece na noite escura que também mora dentro da gente. As que somem e aparecem de vez em quando, são pessoas que flutuam em nosso mundo. Às vezes uma névoa as encobre. Com a volta do sol, que também é estrela, elas reaparecem. Precisam de luz para que aconteça. Já os entes amados por nós, que passam pela morte física, são como cometas   deixando o rastro luminoso das boas lembranças.  Mas não morrem de verdade. Estão fazendo seu excêntrico tour em volta do sol.     

Guimarães Rosa costumava dizer que “As pessoas não morrem, elas ficam encantadas”! Mais do que isso, José Roberto, o irmão que muito povoou meus sonhos de criança, foi o Papai Noel que me fez feliz por muito tempo e está vivo em minhas lembranças...

 

sábado, 8 de fevereiro de 2014

A menina e a lua

 
 
                                                                                    Maria J Fortuna
 
Quando a lua ia crescendo, a menina ficava à espera da Estrela Dalva.  Já era o oitavo ano de sua vida, quando seus sonhos pareciam grávidos de girassóis. Eles eram radiantes no  movimento em busca da Luz. Era assim que se sentia e foi assim que aprendeu a navegar neles, nos sonhos. Apesar da fonte em que se banhavam os girassóis, sua paixão era a lua.
Quando seus pais se digladiavam em discussões sem sentido, ela se negava a ouvir o que diziam, tapando os ouvidos com o travesseiro. Por isso se afeiçoou tanto àquele objeto molinho e macio, com o qual podia fazer o que quisesse. Tomava a forma de que necessitava para lhe consolar. E às vezes ela jogava para debaixo dele alguma guloseima escondendo o tesouro de sua irmã. Aquela que se parecia com um monte de meninas, mas nada tinha a ver com ela. Aquela cuja doçura se parecia com doce de leite e que adorava brincar de bonecas,  tão distante dela.. O que a menina gostava era de deslizar em carrinho de rolimã pelas ruas do bairro, escondida da mãe, que por sua vez costumava leva-la a um grande Centro onde, em dado momento, a senhora sua madrinha transformava-se na própria lua, trazendo consigo a Estrela Dalva. Foi aí que começou sua paixão pelos astros!  Mas não era só um astro, que estava ali, mas a própria deusa, pessoalmente, como grande presente para ela, sua mãe, e inúmeras pessoas que seguiam seu rastro.  O encantamento era total e absoluto!
Assim passou a infância: Entre discussões do pai com sua progenitora e as idas ao Centro, da senhora, que lhe mostrava a face lunar, em todas as suas fases,  e trazia  a Estrela com ela. A madrinha tão carinhosa que a colocava no colo acariciando lhe os cabelos castanhos.  Privilégio dos privilégios! Ainda frequentavam ali:  o Preto Velho, Cosme e Damião e inúmeras outras figuras mágicas, que vinham outras dimensões interagindo com o povo e com ela, a menina.
Quanto às brigas dos pais, ela compensava com uma boa lata de leite condensado, sorvetes e outros petiscos. Ou chamando a atenção sentada na janela do terceiro andar, balançando as perninhas, para ver a mãe interromper seu trabalho e chegar correndo para tirá-la, aos pescoções dali, assim que recebia o telefonema da vizinha contando que sua filha corria sério perigo de desabar da janela a qualquer instante. Não importava o castigo que iria receber. Em seu coraçãozinho o que lhe interessava mesmo era  saber que a mãe, havia deixado tudo para trás para acudi-la!  
Mas não havia coisa melhor para a menina, do que ouvir as estórias dos grandes mergulhos da Estrela Dalva no mar! Ao escutar a essa estória contada pela madrinha no Centro,  imaginava o quanto seria bom, entre peixes, algas, ostras e inúmeras vidas submarinas, conversar com seres luminosos e ouvir suas revelações! Por isso aprendeu a nadar muito bem nos rios e piscinas da vida, onde podia ser o que era: uma menina diferente das demais. Ali podia esquecer as dores do seu coraçãozinho atormentado pelo desfoque das relações familiares, porque o mar, segundo a madrinha, devolvia á tona tudo que era jogado nele. O mar era também a morada da lua, de Iemanjá e de tantas entidades sublimes!
Depois veio a adolescência, a idade adulta e todas as consequências daquela infância vivida entre a dura realidade familiar e seus grandes voos celestes!  E aquela fase da vida rolou feito seu carrinho de rolimã ladeira a baixo.  Mas a Estrela Dalva ainda está ali, perto da lua, que se banha nas águas do mar, e a rede de pesca das lembranças traz as figuras de outrora, para seu maior consolo! E eu sinto que vai ser assim, até que a menina fique velhinha. Convivendo com ela posso senti-la nas suas mais puras e enluaradas lembranças...
 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O mundo precisa de silêncio!

 

Maria J Fortuna
E se o planeta de repente parasse seus movimentos de rotação e translação e a gente ficasse congelada na ação?  Ou se todos nós dormíssemos um século, como a personagem da Bela Adormecida, quando foi picada pela agulha da roca amaldiçoada pela bruxa invejosa? Isso não nos teria levado a nada. Porque não seria uma parada consciente e não saberíamos o significado da sua necessidade.
Quando a gente está saturada de “ismos” como fundamentalismo, totalitarismo, consumismo, etc., ouvimos um barulho insuportável vindo do nosso planeta aos ouvidos da alma!  Isto me dá vontade de procurar recolhimento num convento de irmãs contemplativas ou num mosteiro budista, e ali permanecer.  Mas como faço parte da engrenagem Natureza x Homem não posso entrar num estado completamente meditativo, em introspecção, porque tenho que interagir com a vida aqui fora.  Só seria válida esta escolha para me reequilibrar no eixo ou sentir o foco da ação que se desenrolaria a partir daí, o que é importante, diante do caos que nós seres humanos provocamos em nossa única morada: a Terra!
Penso no maestro recém-falecido Cláudio Abbado.  Antes de entrar no palco, ele se concentrava. Ficava em silêncio absoluto e, para os entendidos, o concerto já havia começado em  sua mente e no coração.  Luiz Schwarcz, que o assistiu  em Lucerna, relata em sua crônica na revista Época, o quanto ele pedia silêncio aos músicos durante a execução da peça. ” Ele queria ouvir o silêncio presente na composição”, diz o cronista. “Acredita que a harmonia vem daí, do acordo inicial, do silêncio que inaugura e encerra a música”. Foi uma das informações das mais importantes para mim. Eu que nunca assisti a um concerto regido por Cláudio Abbado, sinto que o mundo precisa desta comunhão e harmonia entre o Maestro e os músicos, entre os que tocam e os que ouvem!
Esta noite peguei no sono pensando nas guerras, que parecem areia movediça aos pés de toda a humanidade. Alguns me falam que está próximo o fim do mundo. Tudo ao redor parece suspeito. Dá uma sensação de que a confiança partiu sem dar endereço. Lembrei-me então de uma lenda sufi, em que a população de uma aldeia estava enlouquecida porque tomou água de um poço maldito que os fazia delirar. Até que um anjo alertou um justo quanto a  não beber daquela água. Ocorre que o justo, no meio dos loucos, não tolerou mais sua própria lucidez e procurou o poço maldito, bebeu aquele líquido contaminado pela loucura. Esta é a nossa tentação!
E se o mundo parasse para refletir alguns instantes? E daí uma onda de lucidez se fizesse nas mentes, e as pessoas sentissem sua própria fragilidade e de quanto somos perecíveis?  Se sentíssemos com toda intensidade o quanto fazemos parte de uma ópera, que vai se desenrolando aos olhos da memória e, no final, nem sabemos se seremos lembrados ou se haverá aplausos?
Sinto, imensamente,  que o mundo precisa de silêncio!
 

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