sábado, 19 de junho de 2010

Injustiça dói



Maria J Fortuna

Caminhando pela Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, percebi uma presença que me pareceu bem familiar: uma senhora de cabelos tingidos de loiro, aparentando uns sessenta e poucos anos, vestida elegantemente, que manuseava flores artificiais numa casa de decoração. Aquele jeito buliçoso de ser me atraiu a atenção e, sem querer, vi-me feliz, cavalgando pelos verdes anos da minha juventude. Sim, aquela figura pertencia a meu passado, sem dúvida. Era como recorte de uma revista dos anos cinquenta. Nem precisava fazer muito esforço de memória, pois quando ouvi aquela voz aguda, entrecortada por pequenos lapsos como se fosse uma composição que nunca iria se completar, percebi de quem se tratava. Aquela anciã era Laura, a menina da terceira série do curso clássico do Colégio Santa Dorotéia, onde estudei. Apesar de passado tanto tempo, uma dorzinha aguda me fincou o coração, tipo ponta de lápis fina, quando a gente brincava de espetar uma na outra, após raspar o grafite da lapiseira. É dor de más lembranças do colégio, pensei. E dei com a cena bem nítida na memória, tipo filme de cinema em terceira dimensão.
- Hoje escolheremos a oradora da turma! Falou a professora de português. Todas farão um discurso a respeito, como se fosse a escolhida.
Eu me vi escrevendo, um pouco preocupada com a minha timidez. Se eu for escolhida... Como vai ser? Enfrentaria o público? Mas a caneta ia escorregando... E minha mão dançava, entre trêmula e arrojada, cumprindo a tarefa. De qualquer maneira valeria nota. Não sei o que sentiam as colegas, mas meu coração pulsava forte, porque a emoção comandava a feitura do texto. Foi quando olhei para frente e vi Laura copiando o discurso da irmã gêmea, que havia se adiantado um ano e fora escolhida oradora da turma do Clássico, no ano anterior. Fiquei abismada! Como podia colar o texto da irmã com tanto descaramento? Mas ninguém ousou dedurar a colega, muito menos eu.
Passada uma semana, vi a mãe de Laura conversando com a Madre Superiora do colégio. O assunto devia ser sério, porque a religiosa estava séria e pensativa. O que será que a exuberante colega ou sua irmã, haviam aprontado pra tanta seriedade?
No dia seguinte, a professora de português entrou na sala com os discursos dentro da pasta. Olhou-me fundo... Meu coração começou a se agitar no peito. Depois olhou para Laura e começou a falar:
- Duas meninas tiveram melhores notas em seus discursos. Foi empate. Respirando fundo continuou: - Preciso escolher uma das duas para oradora. Em seguida me encarando: - Maria de Jesus foi uma delas, mas creio que por ser muito tímida, ela abrirá mão para Laura, que parece mais desembaraçada!
Nem precisa falar do quanto me senti injustiçada! Meu discurso era autêntico. Não havia sido copiado de ninguém, como o fez a menina. Teria sido resultado da conversa da sua genitora com a Madre Superiora? Ou a professora “fez vista grossa” para agradar a ilustre mãe daquela aluna, pertencente a uma nobre e tradicional família do Rio de Janeiro? Seria porque realmente a professora captou minha timidez? A única coisa que ficou foi uma decisão tomada por outrem, a revelia, sem que eu dissesse uma palavra, e este silêncio se manteve dentro de mim na hora em que a vi subindo no palco com “seu discurso”, ou seja, o da irmã gêmea, aplaudida por todos.
Olhei bem para aquela senhora, atrapalhada na escolha das flores, e segui em frente, tão silenciosa quanto, sem olhar para trás.

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