sábado, 20 de novembro de 2010

Uma voz em tom maior




Maria J Fortuna


Hoje, o ser eterno falou para meu ser finito:
- Você é maior do que a dor dos seus ossos.
Escutei a voz da Consciência, que habita meu corpo há mais de sessenta anos!
– Você é maior do que seu corpo, insistia.
Experimentei uma nítida sensação de estranheza, como se eu não estivesse ouvindo estas coisas pela boca dos que estão a par desta verdade uma vida inteira! Como se eu, já há algum tempo, não me sussurrasse estas palavras, quando as dores da vida se hospedam em meu corpo. Mas a voz falava em tom novo, em nova cor.
Tudo era tão simples como o ato de jogar miolo de pão aos pombos... Ao mesmo tempo tão bizarro... Quase ridículo, que tanta grandeza podia caber num corpo tão frágil! Mas não coube duvidar, ouvia a voz que insistia:
- Você é maior do que seu tempo cumprido e do que há de vir. Maior que suas fantasias... Maior que seu medo e pecados. Maior do que sua loucura!
Não. Não era fuga... Nem tão pouco magia... O que eu estava escutando era mais verdadeiro que a presença do sol na Terra. O que causa estranheza é que sendo tão maior do que meu corpo, ecoa e habita nele... Por que cargas d água estou neste planeta tão dilacerado, onde as pessoas passam fome e, quando comem, estão sujeitas, muitas vezes, a engolir venenos? Sujeitas a consequências das tragédias ambientais, que elas mesmas provocam...
O que este eu maior faz dentro de mim? Por quem me toma? Lembrei-me dos meus antepassados e de suas consciências frente ao perecível, a morte. Por que, mesmo assim, trazem filhos à vida? O que os levou a crer que eu, por exemplo, poderia sair-me melhor do que eles frente às limitações do tempo, ao inevitável? Por um acaso tiveram consciência de que eram maior do que eles mesmos?
- Você é maior que tudo isto... Continuou a voz interior.
Senti-me num circo, onde os maiores desafios de equilíbrio são mostrados em meio a uma festa, onde as pessoas perdem a noção do perigo! Num picadeiro, onde as coisas mais incríveis acontecem! Eu, voando num trapézio, de uma situação a outra, de uma emoção a outra, expondo corpo e alma ao perigo. Tendo que confiar em outro trapezista, que estende as mãos para me segurar, mas que pode falhar. Como domadora de leões fantásticos que me habitam o coração e que, quando rugem, deixam-me de cabelo em pé, frente a meus próprios desejos! Andando na corda bamba dos acontecimentos derrapantes do dia a dia... E o palhaço que sempre brota dentro de mim quando um risco maior aparece? E a platéia? Sem ela o circo não acontece. Ser expectadora de mim mesma... Enfrentar o picadeiro com galhardia. Um compromisso existencial de vida e morte... Pensei tudo isto...
E a voz persistia...
- Você é bem maior do que o perigo.
Quando uma vela está prestes a se apagar, pensei, a gente se junta à chama de outra que esteja próxima. E assim por diante... Mas se sou maior do que eu mesma, tenho essa luz própria. Mas onde está o gerador desta luz? Quem acendeu o eterno dentro de mim? Uma vez eterna, sou luz perene. Para isto há que eu esteja ligada a um gerador Maior cuja Luz sempre existiu...
Aí voltei no tempo e me vi pequenina no cais do porto...Fui receber minha família, da qual eu estava apartada fazia mais de ano... À medida que o navio foi se aproximando, eu fui experimentando uma felicidade tão grande no coração, mas tão imensa, que era quase insuportável esperar mais um pouco para abraçar meus pais e irmãos! Por pouco não me lancei nas águas escuras no cais. Foi uma das maiores felicidades que senti na vida! Naquele momento, no amor, tornei-me maior que eu mesma!
Todos os recados visíveis da Luz Maior nos são dados pela Natureza que destruímos. Pela inocência das flores, animais e crianças. Pelas alegrias dos encontros amorosos e do amor presente até nas dores do mundo.
Talvez seja por isto que eu e meus companheiros de jornada, estejamos neste corpo finito e perecível, mas com uma Luz maior do que nós mesmos. O objetivo cósmico talvez seja este: fazermo-nos entrar em estado de felicidade suprema ao regressar ao fogo de origem. Tornarmo-nos Um com Ele no Amor.
Assim foram aquelas horas da madrugada em que uma voz, dentro de mim falou, amorosamente, que sou maior que eu mesma e finalmente eu acreditei e confiei.

7 comentários:

madhumaretiore@gmail.com disse...

As pessoas que escrevem bonito (no sentido mais amplo da palavra), não sabem que são mais bonitas que as coisas que escrevem.
E penso que isso se deve ao fato de terem, todas elas, um sinalzinho de nascença, que volta e meia acende, mostrando o perigo
iminente da vaidade nublar-lhes a visão.
Esse sinalzinho, facho divino ainda que compacto, eu o vejo em você, que trata com extrema delicadeza tanto a sua alma, quanto o seu ego, para que a caneta não falhe, ou a tinta não escorra em demazia.

Parabéns, querida. O mundo precisa muito de você.

Madhu Maretiore
maretiore@hotmail.com

Eliane Accioly disse...

Querida Mariinha,

um encontro com o sagrado, com o Deus interior (e exterior), pois está em toda parte.
Bjs,

Eliane

norália disse...

Eis porque gosto desta escritora: uma delicadeza enorme para dizer as coisas mais profundas. Amei este texto. Genial. Vou até imprimir. Parabéns por tanta delicadeza de sentimentos e alma.
Abraços,
Norália

MJFortuna disse...

Malu, por email


Fiquei feliz por te encontrar no desenrolar do teu discurso, nas crônicas: "uma voz em tom maior" e "a menina de cabeça chata"...
As palavras chaves do seu texto me parecem:
tempo cumprido; fantasias; medo e pecados; loucura.
O desenrolar das palavras ao longo do texto, perpassam um fluxo de tristeza, envolto em palavras de esperança...em resumo que beleza de discurso... que declaração de um amor vivido ou quem, sabe, por viver...Na verdade eu amo o que você escreve, principalmente quando passeias pelas emoções...

Anônimo disse...

Amiga poeta, que emoção ler este seu texto, fiquei emocionada, faltam-me
palavras condizentes a tào profundo conteudo.
A sutileza e sensibilidade já demostrada em outros escritos seus, se consolidam no
Uma Voz Em Tom Maior
Beijos Neyde

Amo Poetar disse...

Amei este seu jeito musical de conectar com sua alma, com altos e baixos em sintonia, li , reli, amei...
quando eu crescer quero saber escrever assim como você, com cores e som, que toque o coração de todos e que faça quem lê se olhar. tentar se encontrar
Abraços, monica

Unknown disse...

Mais uma vez me emocionando com toda a sua leveza e sensibilidade! Viajei com seus sentimentos. Lindo, Maria!

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