quinta-feira, 7 de agosto de 2014

O terapeuta

 
 
                                                                                                                                                                                 Maria J Fortuna
 
Rosa nem sabia mais quem era ela. Parou no Rio de Janeiro, fugindo do coronel seu pai, que ditava ordens pelos cotovelos o dia inteiro! Era um inferno! Durante as refeições olhava para aquele homem amargo e ficava conspirando  acerca de sua morte. O velho destilava ressentimentos e produzia um mal estar geral na família. Era um sufoco! Talvez conseguisse um pozinho venenoso e discretamente colocasse em seu prato, pensava. Mas depois viria a policia, a autopsia...  Em seus doze anos de idade, hormônios estourando nas veias, coração querendo voar e o velho ali, controlando a vida de todo mundo em casa.  E ainda tinha o irmão mais velho, que mesmo detestando o pai, adquiriu o hábito do controle da vida alheia.   Precisava sair daquilo lá. Do ambiente opressor e largar-se pela vida como papagaio de seda voando nas nuvens, solto no ar. Foi assim que ficou obcecada pelo desejo de liberdade! Tinha que fugir, não para os braços de um homem como a família esperava. Afinal  aprendeu que todo o elemento masculino era violento e controlador, mas fugir dali seria bom para respirar longe  daquela família. Por mal dos pecados, seus irmãos eram três homens.   E a mãe era submissa, com seus olhos cansados e seu meigo sorriso de fada. Queria ir embora, e aos dezoito anos, e foi mesmo. Parecia ter voado pelos ares a presença incômoda dos familiares. Tal como desfazendo um jogo perverso, jogasse para o alto as cartas de um baralho.  Como se de repente, o terço de sua mãe se partisse e as contas se escondessem pelo chão, sem retorno, e  ela não  conseguisse mais rezar.   Como se seus passos na areia fossem soprados pelo destino e ninguém soubesse seu rumo.
                Nem dava para virar a cabeça e deitar o olhar no que ficou pra trás. Queria escorregar da família opressora tal como um caroço de manga, que quando apertado, desliza da casca.   E foi assim.  Era melhor enfrentar a solidão e o desamor, sem arreios. Perder-se na luz ou no caos para encontrar-se. Tudo era preferível à morte lenta ali, atolada no medo e na culpa.
Foram muitos anos lutando contra aquela doença, sem saber na verdade seu nome.  Viveu quase de tudo. Não se prostituiu por causa do velho medo da violência dos homens. Eles sempre seriam opressores, estranhos, desconhecidos. Mas como era bonita, atraiu alguns deles que tinham traços mais femininos. Um belo machão só gostava de ver no cinema, de longe...
Até o dia em que conheceu o terapeuta. Ele era enorme aos seus olhos! E tinha belos olhos verdes! Aos poucos chegou à conclusão que aqueles olhos enxergavam sua alma! Revirou suas origens, sondou o anjo e o demônio que moravam nela. Arriscou-se a tocar as cordas do seu coração medroso e ressentido. Desafiou a doença, mostrando à Rosa que ela  podia montar outro baralho com cartas imperfeitas, e rezar num terço de contas irregulares, enfim conviver com a louca que morava dentro dela e fazê-la sentir que ela, a louca,   era sua força, o fogo, a energia que lhe  queimavam  o útero e coração. Não restava outro jeito de fazer as pazes com sua sombra. Teria que se aceitar. O terapeuta era tido como um louco que se arriscava a atender até esquizofrênicos. Amado e odiado por muitos, ele “cheirava” cada paciente. E a luta era quase corporal, para que o mesmo despertasse de suas descabeladas ilusões e se descobrisse na caverna do próprio ser. Era especialista em desmascarar o demônio de cada um, tal qual um exorcista. E a luta demorou três anos e três meses.
Ela escrevia relatórios depois de cada sessão. Neles, contava tudo que havia vivido e ecoado em seu coração.  Com letra trêmula, numa noite de insônia,  escreveu o último relatório dos muitos que escrevia depois de cada sessão,  e o entregou ao terapeuta. Escreveu à medida que se lembrava dos episódios marcantes que vivenciava no grupo e de como estava se sentindo, com frases soltas. Mas cada  uma dessas frases parecia ser o resultado do refluxo de sua consciência. E foi escrevendo... 
“Humildade é o reconhecer minha estatura diante do mundo.
Quando  a chama da  razão, da inteligência para de servir aos sentimentos eu me perco,  desagrego, não há mais luz nem sanidade mental.  Então sinto medo. O medo é a emoção mais fácil de ser sentida. O mundo do pensamento é o mundo do delírio. A vida é uma eterna busca de unidade e nos meus ensaios e erros reside a alegria do encontro com o outro, que não passa de um reencontro comigo mesma.
Sou a fusão do meu ser com o não ser. Positivo e negativo. Nisso meu dou o direito de errar e conviver com meus irmãos no banquete da vida.
                O sentir e o consentir o outro é um treino constante para o amor a mim mesma. O respeito e a justiça são as condições básicas para que o amor se faça presente.
O homem existe pelo que sente. Deus é o outro, ponto de referência para que eu exista. A confiança que deposito no outro é a entrega nas mãos de Deus.  Não há tempo nem espaço no mundo do sentimento.  Começo a ficar doente na hora em que o tempo passa a existir para mim. 
O sentimento de culpa coloca o outro sob minha dependência e vice-versa.  O sentir e consentir o outro são  treino constante para o amor a mim mesma. O respeito e a justiça são condições básicas para que esse amor exista.
O ato de fazer nascer é um ato  amoroso da mãe, no consentir que em seu universo haja um corpo estranho, gerado por ela, e do pai que dá a liberdade àquele que acabou de gerar.
 A criança é a encarnação da luz por causa de sua espontaneidade.  O herói e a vítima perderam a espontaneidade. Vivem num mundo obscuro.
O pai é a referência da minha liberdade. Deus é Pai, é a liberdade. A minha liberdade. Só possuo consciência à medida que eu sinto. “No mais me restam a atenção e o desgaste.”
 
O terapeuta leu seu texto, pausadamente, enquanto o grupo aguardava o final da sessão. Depois olhou para Rosa. Ele não era mais o homem grande. Agora ele tinha sua estatura, mas seus olhos de esmeralda brilhavam mais do que nunca! . Sorriu  para a moça e , corajosamente, assumiu sua  baixa na terapia. A alta, a vida que dava...

6 comentários:

Eliane Accioly disse...

Mariinha querida, uma linda novela. Deixei mensagem inbox no facebook. Saudades e Beijos

MJFortuna disse...


Maria Teresa Eid Amei!!! Tocante!! Bjs

há 15 horas · Descurtir · 1

MJFortuna disse...



Antonio Caetano Scirea para Maria J Fortuna....

VC me surpreendendo sempre... Maravilhoso... Resta descobrir no que VC não é boa

MJFortuna disse...


Alfrenice Fortuna

Gostei muito da sua crônica.

há 17 horas · Descurtir · 1

MJFortuna disse...



Eliana Angélica de Sousa

8 de ago (Há 5 dias)

Que lindo o seu texto. E que baixa da terapia mais sábia!
E com direito à alta da vida, pela vida e com a vida!
Velu!
Parabéns!
Bj.

eliana

MJFortuna disse...

Da minha sempre fiel leitora que não gosta de se identificar:


Que maravilha!

No 4º. Parágrafo, 5ª. linha “ Baralho com cartas imperfeitas e rezar um terço de contas irregulares.”...você me ensina poeticamente que é possível viver, mesmo com nossas imperfeições....

( Aliás, humanos que somos, não há mesmo outro jeito. E, quem reconhece isso e vive mais leve e apaziguado, como você ensina.)

Sensível e sábia - a carta final de Rosa: “Humildade é reconhecer minha estatura diante do mundo”

Muito lindo, Mariinha. Você se superou!

Obrigada pela partilha.




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