segunda-feira, 4 de setembro de 2017




Meu primo Padre Ruas



Maria J Fortuna

                    Um dia ele apareceu lá em casa. Ainda moço, magro, um tanto pálido, estatura média, olhos castanhos de grande profundidade. Usava batina bem cuidada. Meu pai nos apresentou: - Esse é o meu sobrinho, filho da tia de vocês, a Emília, portanto, primo em primeiro de vocês.  Era o Padre Luiz Augusto de Lima Ruas, mais conhecido por Padre Luiz Ruas. Ele sorriu timidamente, apesar de que lá em casa, para nós católicos, todo padre ser autoridade que devemos respeitar por ser ungido pelo Sacramento da Ordem.  Mas ele me pareceu alguém muito humilde, que comungava com o silêncio...Fora buscar sua mãe, tia Emília, hospedada lá em casa para tratamento oftalmológico no Rio de Janeiro. Ambos morando em Manaus, no Amazonas.  Mas ninguém nos falou do poeta que estava diante de nós! Meu pai, com ar malicioso, disse apenas que ele era um padre brilhante, mas pertencia, ao que ficou sabendo, ao Clube da madrugada... O primo nos ofereceu seu livro Linha D´Água. Nele passei os olhos rapidamente. Mas acabei por herdar esta relíquia, visto que todos os meus, na atualidade,  já se foram. Não podia imaginar que estava diante da obra de um poeta imenso, intenso, transcendente! Um gigante da poesia! “Um dos maiores poetas do Brasil e um dos mais desconhecidos”, como disse o doutor em letras Roger Samuel*.
                    Meu primo era sacerdote, jornalista, radialista, ensaísta, professor de literatura e línguas e sobretudo poeta! Isso tudo descobri agora, depois de mais de sessenta anos do dia em que o vi pela primeira e última vez, na sala do nosso apartamento na Tijuca. Ele viera buscar sua mãe de volta à Manaus depois de um tratamento oftalmológico.  Sei que Luís sempre foi um filho único devotado a ela, já viúva, até que ela se fosse desse mundo.
                    Soube que durante o regime militar, Padre Luís foi vítima de perseguição implacável por causa das posições políticas que defendia, e amargou dias de prisão com diversos companheiros.   O tal Clube da Madrugada que frequentava assiduamente, congregava as maiores cabeças da literatura de Manaus. O Clube Foi criado em 22 de novembro de 1954 e é uma associação literária artística brasileira em Manaus.  E não o que meu pai insinuava com seu sorriso malicioso. O que não diria se soubesse que Padre Ruas frequentava bares e era admirado pelos alunos da Universidade Federal do Amazonas, como o padre rebelde? Além disso ele era crítico de cinema e literatura, escrevendo sobre o assunto em diversos jornais de maior circulação da localidade. Foi professor de psicologia na Faculdade de Filosofia e de francês na Escola Estadual.
                    Os anos se passaram, fui para Minas e deixei o livro do meu primo para trás sem nunca o ter lido.   Publicou outras obras,  além de Linha D´Água (1970), coletânea de contos, considerado pelo acadêmico amazonense Elson Farias, como “livro legendário”, Os graus do poético (1979), Poemeu(1985), Cinema e Crítica Literária, e o incrível livro de poesia, que me deixou estarrecida pela sua beleza:  Aparição do clown(1958) . Este último encontrei procurando no Google por Luís Augusto de Lima Ruas, que é seu nome completo. Encontrei um Ensaio, de autoria do Dr Rogel Samuel, a respeito da Aparição do clown que me facilitou, em muito, a leitura desse poema, permitindo que eu inflamasse meu coração em cada verso... A interpretação para mim está mais que correta.  Em seguida procurei por Linha D´Água na minha estante e não encontrei mais o meu velho exemplar herdado.  Fiquei estupefata! Agora estou buscando todos os seus livros em sebos, por esse Brasil a fora... Só que aquele volume, desaparecido por negligência minha, estava autografado... coisa que não mais vai acontecer, desde que meu primo se foi desse mundo no ano 2000 aos 69 anos.  Busco, também, o livro Lima Ruas, itinerário de uma vocação (2004), onde Roberto Mendonça analisa aspectos significativos das obras de Padre Ruas em dois volumes. Sabe Deus se vou encontrar!  Não há mais membro próximos da família Lima em Manaus.
                    Por que ignorei tanto a obra do meu primo durante tantos anos? Por que dei tanta importância aos letrados da família Fortuna, lado materno, e tratei com tanta indiferença parentes do lado paterno? Talvez por ter sido criada distante dos Lima e muito próximo aos Fortuna. Pode ser também a pouca afinidade que tive com meu pai.  Ou talvez a distância física dos parentes desse tronco familiar. Eles sempre moraram no Ceará e  Amazonas e os parentes do lado materno em São Luís do Maranhão e no Rio de Janeiro onde vivi.  Fora os trinta e sete anos que morei em Minas. Mas não vou desistir! Coisas que acontecem fora do tempo e do espaço.... Aqui está uma amostra da Aparição do clown, que penetrou em meu coração com toda força e me deixou inebriada!

Olha a brisa dançando na folhagem!
 É na brisa que o pássaro virá!
 Virá com a língua de fogo
E os cornos septiformes!
 Olha as luzes!
 Vê as cores, ouve os sons! Tudo recomeça
A vibrar e a dançar.
 É o tempo. Olha a estrela de ouro e de basalto.
 O pássaro virá...






*ROGEL SAMUEL é Doutor em Letras e Prof. Aposentado da Pós-graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Autor de vários artigos e livros, dentre os quais o Novo manual de teoria literária. Petrópolis, Vozes, 4a edição. Pássaro em voo, leitura de Aparição do clown, de L. Ruas, publicado originalmente em “Leituras da Amazônia” da Universidade Stendhal-Grenoble? U.A Ano 1, abril de 1998







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