Desconheço o autor da foto
Maria
J Fortuna
A cara do animal sempre
havia me intrigado. Ele parecia com aqueles senhores sérios, dignos de muito
respeito. Ainda por cima, tinha barba como o vovô da padaria. Qualquer maltrato
àquele bicho sisudo, para mim, seria uma afronta, um desrespeito. O olhar dele
me intrigava... Parecia que queria me segredar alguma coisa... Era como se
tivesse falando dentro da minha cabecinha: Me respeite! Me respeite!
- Esse bode quer fazer
amizade comigo, pensava eu. Como sempre fui uma criança que se sentia muito só,
achei que devia ser amiga e confidente do bode. Afinal sua linguagem se resumia
num béééé, que podia dizer muita coisa, só que ninguém compreendia. Parecia o
som de quem estava se queixando de alguma coisa.... Seria absurdo desrespeitar
aquele bode, pensava eu. Seu jeito lento de comer capim devia ser de bicho velhinho...
Bode Simão, nome dado por
mim, passou a fazer parte do meu universo. Era como se ele conhecesse meus
segredos e eu os dele, daquele animal quase silencioso que eu visitava todos os
dias. Certa vez criei coragem e afaguei-lhe o pelo, que era ao mesmo tempo
macio e áspero. A coisa estava ficando séria, porque a amizade estava se
estreitando... Ele tinha um odor meio forte, mas não desagradável para mim, sua
amiga. Passei a ficar muito preocupada quando chovia, porque o bode podia estar
dormindo na chuva e sentindo frio, apesar do calor do nordeste. Ou alguém podia
até bater nele, sendo cruel, chutando-o ou jogando-lhe pedras, como
infelizmente eu assistia muitas vezes em relação aos gatos, que corriam no muro
do quintal.
Havia qualquer coisa de
telepático na minha convivência com Simão. A gente se ligava através do
pensamento e ninguém sabia o segredo de nossa comunicação.
Era só o caboclo amarrar a
corda do pescoço do amigão no poste que eu aparecia na janela de casa, com
minha cabeça cheia de cachinhos, esperando oportunidade para me aproximar
novamente do bode ancião. Aí começava o diálogo mental:
- Quantos anos tu tens? Indagava-lhe.
- Não sei bem, mas já
estou velho... Imaginava a resposta.
- Teu dono é bonzinho pra
ti?
- Às vezes...
- Tu tens pai, mãe e
irmãos?
- Não sei por onde
andam...
- Se alguém te maltratar
tu me falas.
- Está bem... Eu falo.
Numa destas ocasiões, eu
subi em dois barris que estavam ali jogados. Coloquei um pé num barril e outro
pé no outro. E tentei me equilibrar. Mas eis que os barris estavam vazios e
cada um rolou numa direção, o que me fez desequilibrar e cair, em cheio, no chão de terra! Senti a dor do tombo nos ossos da bacia e fui
chorar debruçada no corpo do bode. Só pelo calorzinho daqueles pelos macios e
sentindo sua respiração, fui me acalmando... Parei de chorar e limpei os olhos.
A dor passou e tudo ficou bem. Olhei para o amigo, que me fitava com aqueles
olhos castanhos e mansos e disse:
- Obrigada, viu?
- De nada, espero que
fiques bem, imaginei a resposta do amigo.
Num dia claro, cheio
daquelas nuvens que parecem carneirinhos, saí para encontrar com o amigo.
Quando cheguei percebi que ele estava solto. A corda se arrastava pelo chão.
Então me aproximei curiosa e confiante em nossa intimidade. Afaguei-lhe a
cabeça como sempre, conversamos um pouquinho, não me lembro de o que, quando
ouvi a voz de minha mãe me chamando.
- Fica aí e não foge, viu?
Disse dando-lhe costas para ir em direção a entrada de minha casa. Dei uma olhadinha para trás e vi o bode Simão, abaixando a cabeça. Começou
então a dar uma espécie de ré, o que eu interpretei como timidez. Deixei pra lá
e segui meu caminho. Lembro-me direitinho da enorme pancada no traseiro que me
fez cair esborrachada no chão tão duro, quanto os chifres daquele bode. Entre revolta e decepção, vi que o considerado
então amigo, havia me traído pelas costas, e com isto veio o fim da nossa
grande amizade!
Troquei de mal e nunca
mais conversei com ele. Que marrada inesquecível!
Um comentário:
Maria Lucia Vasconcelos, por email
... adorei o bode Sião...eu tive um pato que foi criado no quintal, subia as escadas e vinha almoçar e jantar conosco, apesar de macho, usava laço de fita e se chamava papato... era uma gracinha que se transformou numa graçona...beijos malú
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