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sexta-feira, 2 de setembro de 2011
Brotando no escuro
Maria J Fortuna
Guardada nas gavetas da memória, está a doce lembrança daquele dia em que a planta brotou no escuro. Parece incrível, mas aconteceu! Eu a havia comprado num quiosque, desses que existem por aí, nas esquinas do Rio de Janeiro. Aconteceu que ela, aparentemente, parecia ter morrido, sem deixar sementes. Mas não era verdade. Apesar das pequenas flores vermelhas que foram caindo, como lágrimas de sangue, em cima da minha escrivaninha, das folhas que nem sequer foram amassadas pelas mãos do tempo, do caule central ter recolhido as pequenas hastes de tom cinza desbotado, vergando-se até dar a impressão de que iria mergulhar na terra. Apesar de tudo isso...
Eu havia deixado o vaso num quarto fechado e escuro e saí estrada afora, numa viagem ao sol, para Belo Horizonte. Não pensei mais na planta. Só prometi a mim mesma, que não iria comprar outra daquela espécie tão fraca.
Enquanto isso, a vida borbulhava numa semente nova, irmã da falecida, embaixo da terra úmida, no vaso azul pintado com nuvens que imitavam o céu. Quando cheguei de viagem, a surpresa foi grande! A nova plantinha se espreguiçava, através de duas folhinhas verdes como esperança, que balançaram com o vento, causado pela abertura da porta do quarto.
Lembrei-me da gestação da minha mãe, quando me abrigava semente, em seu seio. Ela se conservava em total silêncio, no brotar de nova vida em seu útero. Ninguém podia imaginar que, aquela mulher fragilizada pela doença e pela idade, estava a gerar mais um ser – o quarto filho. Marido desempregado, família morando na casa do pai e lá vem outra gestação! Minha mãe havia perdido a mãe, mas tinha pai e onze irmãos. Alguns casados. Dizer que estava grávida àquelas alturas, soava como falta de juízo. E ela escondeu o mais que pode, o broto que crescia no escuro do seu ventre e que estava dizendo sim à vida, apesar de tudo! Gravidez aos 38 anos também seria de risco. Enfim, tudo ia contra meu eu, enquanto semente, regada pelas lágrimas ocultas da mãe.
Quando estava no quinto mês de gravidez, uma tia, ao visitá-la, notou o ventre crescido e ela teve que contar o que estava acontecendo. Daí teve muita fala de protesto na família, onde culpavam pai e mãe de “irresponsabilidade”. Mas tudo isto ocorreu quando, em plena guerra, centenas de crianças eram assassinadas nos campos de concentração nazistas. Outras crianças foram esmagadas com seus pais e avós, e eu me sinto privilegiada por ter tido o direito de nascer. Ainda mais daquela linda mãe, tão especial, que me acolheu com tanto amor!
Estou certa de que, no mundo, existem duas espécies de seres humanos: os que foram gestados no escuro, mas mesmo assim nasceram, e os que foram desejados e amados de todo o coração. Quando vejo alguém irritado, agressivo, fico pensando de como foi semeado, brotado e recebido, em especial por sua mãe. Geralmente acerto. Há casos em que a consciência da presença de um Amor maior, aquece e ilumina a semente brotada no escuro e ela se desenvolve, apesar da sua luta existencial. Apesar de conhecer, prematuramente, o sofrimento e se expressar com dificuldade. No segundo caso, a pessoa é amorosa e solícita. Suas raízes foram plantadas em terreno amoroso. É cheia de graça e compaixão, tratando os outros com o mesmo acolhimento de como foi recebida no mundo. É alegre e muitas vezes invejada.
Mas todo tipo de caráter é bom quando concebido amorosamente. Não importam as condições. Brotará, mesmo no escuro..
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4 comentários:
É lindo!
Mesmo no escuro há muita luz!
Bjks
Que bom, querida, que vc enxerga assim...
bjos e obrigada pelo comentário
Eliana Luppi por email:
Que suavidade e que delicadeza esse seu jeito de escrever sobre o seu nascimento.
Ficou muito lindo mesmo!!! Amei!
Beijos.
eliana
Maria Lucia Vasconcelos por email:
Tenho o maior prazer de me envolver nesse mundo de emoções que você me oferce...obrigadíssimo!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!beijos malú
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