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Maria J Fortuna
A criançada estava reunida num terreno baldio ao lado do prédio onde meus pais moravam. Cacau, minha sobrinha, que na verdade se chama Claudia, estava no meio deles. Havia criança de 4 a 10 anos. Aquele terreno, que com sua garganta suja, mostrava os restos mortais de uma antiga casa demolida, era o refúgio da meninada que morava nos prédios circunvizinhos. A brincadeira corria solta quase toda tarde, até quando uma das mães pendurava-se na janela do prédio para chamar o filhote, por que era hora do banho ou do jantar.
Aquele dia turma se reuniu para alimentar uma grande aquisição do grupo: um pintinho, que estava mais ou menos com uma semana de vida, e que já mostrava algumas tenras penas saídas do corpo frágil, amarelo, cheio de penugens. Mas... Mal chegaram ali, viram o pequeno projétil de ave, deitado com as pernas pro ar com os minúsculos pés embolados. O pintinho havia falecido! Foi uma tristeza...
Começaram os preparativos para o enterro da avezinha. Um dos guris buscou uma caixa de sabonete Phebo, que a mãe de algum deles conservava em seus guardados. Outros percorreram a rua para colher flores, a fim de cobrir o corpo e a sepultura do Piu Piu. Era assim que eles o chamavam. Isto porque não sabiam seu sexo. Poderia ser um filhote que viraria alguma galinha gorda, que o grupo, na certa, protegeria da faca. Ou um galo, que se tornaria rei do terreiro. Mas que terreiro? Aquele pintinho deve ter saído de alguma caixa durante a feira que acontecia as sextas e ali todo mundo morava em apartamentos, não dava para acolher o pintinho que talvez tivesse vindo de uma chocadeira. Será que o coitado não conheceu nem mãe, nem pai? Era o que os meninos se indagavam. Algum vendedor de aves se descuidou. Difícil encontrar lugar pra ele que não fosse o tal terreno baldio, sob a proteção da turma.
Depois, dois dos garotos cavaram o chão cheio de cacos, tijolos e vidros da antiga construção, e Piu Piu foi então enterrado perto de um pequeno mamoeiro, que teimava em crescer por ali, naquelas condições precárias, sem água nem nada.
Aí começou a choradeira... As meninas choravam aos borbotões. Os meninos faziam cara de macho: -“Homem não chora! Só se for um bebe!” Puseram uma cruz de pequenos galhos de árvore, amarrando-os com linha do costureiro de alguma outra das mães, e cercaram a sepultura do animalzinho com pedrinhas, no formato de coração. para não esquecerem onde Piu Piu havia sido enterrado.
Em meio à cerimônia do enterro, surgiu Neném, de 4 anos, conhecido por este nome porque ainda usava chupeta. Neném entrou assim meio desconfiado, puxando um carrinho de plástico cheio de pedras. Até então ele estivera viajando com sua família.
Aproximando-se cada vez mais e olhando para os amigos mais velhos, o guri parou, curioso e, em seguida, ficou ali de pé, embaixo do pequeno mamoeiro, impávido! Então, uma das meninas carpideiras, depois de um longo suspiro, ao perceber a presença do recém- chegado, indagou:
- Neném, você não vai chorar?
E ele, cruzando os bracinhos e fazendo cara de amuo, falou com raiva:
- Não vou chorar não.
- Mas por que, Neném? Indagou a turma em coro.
No que Neném respondeu com um ar preocupado:
- Ora, eu não conheci o pintinho!
Esta crônica foi publicada no Jornal João do Rio, onde ocupo um espaço
http://www.joaodorio.com/site/index.php?option=com_frontpage&Itemid=1
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6 comentários:
Mariinha, Neném foi objetivo, realista, por que chorar se ele não conheceu aquele bichinho? não estava envolvido?
Quisera que adultos pudéssemos conservar esta pureza infantil, não choraríamos pela vítimas do Japão, do Haiti, de Teresópolis ou das torres gêmeas...Choramos por desconhecidos diante de tragédias maiores e, até mesmo, menores.
Parabéns! Bela crônica. Norália
Pois é, Norália, Isto me lembra Ernest Miller Hemingway em Por quem os sinos dobram...
Obrigada por mais um dos seus preciosos comentários!
Maria do Céu, por emal:
Num pedaço da manhã, reli suas crônicas...Os temas se entrelaçam, porque são seu inconsciente que se desvela.... crônicas que "brotam do escuro" embora seja da realidade sob o sol, que, via de regra, você tira o mote.
Nas bolhas de sabão, a fantasia. E não é que sem ela não podemos viver?
Como crianças, adultos carecem dela. Já sentenciou a Profa. Maria José de Queiroz: " Os adultos também precisam de contos de fada". (Só assim damos conta de suportar a vida....)
Senti o cheiro da Lavanda esparramada nos campos da França e a Beleza de que você fala, -li isso ontem, ao estudar os mitos e contramitos da criação - mais que conceito estético, está no TERRENO DO SAGRADO!
Tudo muito bonito, Mariinha!
Você fiel a si mesma. Ao seu desejo. Às suas lembranças mais recônditas. Atenta ao ontem e ao hoje. Ao que encanta seus olhos; ao que a entristece, intriga, revolta. Ao que deixa você atônita, e pensativa, e sem respostas....
Continue assim, essa partilha de emoções e de impressões. Brindando seus amigos com a beleza sagrada que capta do cotidiano. E também o desesperador. Que remete às mais duras contingências da vida. Aliás, nem sempre: brotam, impiedosos, do coração empedernido das criaturas....
Meu beijo de afeto fraterno.
DoCéu.
Do Céu querida,
adoro quando vc tece estas considerações a respeito dos meus textos! É muito gratificante!
Quanto as fantasias, eu vivo nelas! Através delas que escrevo meus livros infanto-juvenis. Mas há pessoas, querida, que não crescem... Não sabem destiguir o que para elas é sonho ou realidade. Se bem que este tema sonhos, passa por enorme revisão!
Um afetuoso abraço
Maria J Fortuna
Jussara A.Guimarães, por email
Querida amiga,
Quanta inspiração!!
Muito lindo.
Parabens!
Grande beijo
Jussara
Vera Zuccari, por email
Hoje li algumas de suas postagens :" A turma do jardim Laranjeiras" ,
"Brotando no escuro" , "Bolhas de sabão" .
Como sempre gostei muito de seus temas nas postagens e de como você
escreve
Vera
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