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quarta-feira, 19 de outubro de 2011
O caso da sepultura
Maria J Fortuna
Pensando como iria realizar meu sonho de consumo - um notebook, lembrei-me de que tenho um “lote” no Bosque da Esperança, um cemitério em Belo Horizonte. Fiz o levantamento do preço do “imóvel” e deu mais de quatro mil reais... Com minha nova opção em ser cremada, decidida há uns anos atrás, e a mudança para o Rio de Janeiro, resolvi negociar com o Bosque para ver se eu conseguia, com a venda da cova, ter dinheiro para comprar meu objeto de desejo.
Busquei meu cartão de proprietária, com todas as prestações de condomínio devidamente pagas. Um “imóvel” para alguém que ficará imóvel mesmo, sorri e telefonei para a diretoria do estabelecimento funerário.
- Alô!
- Se senhora... Respondeu uma voz de além-túmulo.
Existe voz de cemitério ou, por coincidência, o homem tinha aquela voz de fim da linha? Perguntei a mim mesma.
- Senhor, gostaria de uma informação, falei meio ressabiada.
- Sou todo ouvido, ecoou a vós cavernosa no fone.
- É que tenho uma sepultura aí no Bosque....hehehe , sorri desconcertada, achando-me idiota por estar tão “cheia de dedos.”
- Várias pessoas tem sepulcro neste estabelecimento, interrompeu-me a voz estranhíssima!
- Com certeza, senhor. Mas gostaria de saber o que fazer para vendê-lo, indaguei de pronto.
- Mas como? A senhora quer vender sua última morada?
- Sim, por que? Indaguei achando que o sujeito não deveria se meter nisto.
- Saiba que tem gente que passa a vida pagando este futuro conforto.... E tem gente que é jogada numa vala da prefeitura para indigentes... Com sua licença, a senhora tão privilegiada, ainda assim quer vender seu “imóvel.”
- Sim, por que não? Não quero este tipo de “conforto” senhor...
- Pense bem, senhora... Sabe mesmo por que deseja realizar este ato talvez impensado?
- Senhor, deixe-me falar... No momento atual eu sou contra sepulturas, o senhor tem alguma coisa contra eu virar pó? Indaguei mais irritada ainda.
- Como pó? A senhora quer dizer cinzas... Mas sepultada, um dia a senhora vai virar cinzas, com certeza. Os ossos são fraquinhos... Vão se quebrando...
- Não quero saber de osteoporose cadavérica, senhor. Quero apenas vender meu túmulo.
- Mas senhora...
- Eu quero ser cremada! O senhor compreende agora? Já tratei dos papéis.
- Hum... Então por que comprou o sepulcro no Bosque? Não temos este serviço... E se eu fosse a senhora não faria isto, insistiu.
- Não faria isto por que?
- Porque o defunto sente a cremação... Falou com uma voz mofada.
- Senhor, se o defunto sente ou se não sente o problema é meu... Respondi, começando a suar com aquela conversa fúnebre, afinal eu serei o defunto...
- Desculpe-me senhora, como espírita tenho obrigação de lhe alertar... Continuou o homem, que parecia muito velho.
- Eu agradeço muitíssimo, respondi, mas... O que ele queria dizer com aquilo? Como espírita devia saber mais do que eu... Será que eu deveria vender minha sepultura mesmo?
- O que o senhor quer me alertar? Indaguei já meio ansiosa pela resposta.
- Que se a senhora insistir, vai acabar se repetindo o terrível episódio do Manoel da Nóbrega...
- Que terrível episódio? Eu assistia a quase todos os seus programas na Praça da Alegria quando menina, indaguei curiosa
- A senhora não sabe? Mostrou-se surpreso e continuando... - Pelo tempo que ocorreu o fato, os que sabem do episódio, se ainda não desencarnaram estão por desencarnar....
Eu me senti quase uma múmia.
- O que aconteceu com o homem, quer dizer com o cadáver do homem, senhor? Interrompi, cada vez mais curiosa...
- O falecido comunicou-se com um medium que psicografou toda sua agonia no sarcófago, durante a cremação... Pigarreou.
- Mas ele não estava morto, senhor? Indaguei já me sentindo um frango no espeto, ou com mais dignidade, a própria Joana D´Arc.
- Os mortos saem muito devagar dos seus corpos... Falou com uma voz mais pra murmurante... Para não dizer apavorante!
Eu estava completamente arrepiada e louca para terminar aquele papo de além- tumulo! Ufa! Que conversa difícil!
- Senhor, diga-me o preço da sepultura e se pode vendê-la para mim por um preço mais barato que as que estão em oferta, só isto.
- A senhora continua insistindo depois de tudo que lhe contei? Indagou com tom de frustração caquética. E completou:
- Não vendemos tumbas antigas, senhora.
- Mas como antiga, se ainda estou viva? Isto quer dizer que nem foi estreada!
- Mas pode ser a qualquer momento... Um frio me correu pela espinha...
- Então, se eu não quero mais ser enterrada, quem vai enterrar-me à força onde não quero senhor?
- Se não tem parentes, pessoas piedosas.... Respondeu, com voz embargada, assoando o nariz como se tivesse chorado. A senhora tem que deixar tudo por escrito.
- Não pretendo partir agora, senhor, retruquei
- A senhora não sabe... Falou raspando a garganta.
Devo estar tendo um pesadelo, só pode, pensei arrepiada
- Fim de conversa, senhor, eu só gostaria de saber se não há esperança de o Bosque da Esperança vender minha sepultura. Vou anunciá-la no jornal.
- Mal lhe pergunte, a senhora mudou-se para o Rio de Janeiro?
- Sim, mudei-me. Por que?
- Mas tem casa aqui em Belo Horizonte, continuou soturnamente.
- Sim, tenho. E daí?
- Por um acaso a senhora sabe onde vai cair morta?
- Com esta, eu desisto, senhor... Suspirei. Como é mesmo seu nome?
- Jeová...
Bati o telefone perplexa. Até hoje estou sem notebook.
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