Maria J Fortuna
Ele tinha um jeito intrigante de se despir das palavras e mergulhar no silêncio. Mas precisava que o verbo o regenerasse dos maus pensamentos. Carecia falar de suas tristezas, desejos e da sua mais remota alegria. Permitir, por um instante, deixar o mausoléu da solidão, imposta ou consentida, para que palavras fluíssem numa linguagem e num código, só dele, na expressão do seu amor pelo belo, pela vida que se manifesta através dos sons das palavras. Não podia deixar o momento escorrer entre os cascalhos e ignorar o ouro bruto que se disfarçava, nos fortes braços de suas lembranças. Tudo o que almejava, além do amor, era reconhecimento. Mas como ser reconhecido se sempre teve dificuldades para expressar até para si mesmo, sua realidade interior? Aparecer, deixar-se mostrar com o ar sombrio, mastigando os mesmos medos. Por causa disso, sempre fora tímido. Como iria agora encarar a vida se as pessoas seriam sempre estranhas para ele? Ninguém era mais obscuro...
Sentia-se possuído por duas personalidades distintas: uma delas firme como rocha, sensata, coerente, que era espectadora da outra, fanfarrona, delirante e inconsequente, que transbordava em fantasias malucas, e em noite de lua cheia, como mulher grávida, não tinha limite, manifestando-se através de imagens coloridas e desconexas. A primeira não podia fazer nada em relação à segunda.
A primeira persona não aprovava a segunda em nada e procurava não se identificar com ela, mas em noite de insônia, a solidão ecoava em seu peito fazendo-o procurar, pelos becos da mente pela segunda, num pedido de socorro! Então ela lhe trazia prontamente a imagem de uma mulher morena, de seios e ancas fartas, perfumada de jasmim, que o colocava maternalmente no colo e, em seguida, se entregavam aos mais libidinosos atos. Depois de algum tempo de luta e desespero, num orgasmo sufocado, vinha o alivio... Então, ele arfava no fundo da cama, com sua espada dolorida numa das mãos e os lençóis regados pelo sêmen que nunca havia transbordado em outra carne que não fosse a sua. Por breves instantes, sentia imensa sensação de conforto, onde seu feixe de músculos e ossos descansava... Às vezes uma lágrima rolava do seu olho direito.
Mas como homem religioso, sua grande questão era: uma vez com a certeza de que nunca conseguiria amar uma mulher de verdade, como faria com suas noites mal dormidas no colo da sua mulher encantada, sem incorrer em pecado? Afinal, o que lhe dava vigor e alivio, era aquela presença da morena, com os seios maduros e ancas maternais, forjada pelo desejo que só ele conhecia. Ela trazia prazer e afugentava seu medo. Qualquer mulher concreta, palpável, humana, era impossível de ser amada por ele! Por isto havia se tornado poeta. Precisava sublimar o erotismo, através de alguma coisa além daquela obsessão que lhe trazia culpa, em noites mal dormidas. Não podia abrir mão da visão da mulher irreal que minorava seu sofrimento e que por isso, naqueles instantes fugidios, deixava transbordar a ternura que não compartilhava com ninguém! O jeito que tinha era deixar-se levar por sua persona louca e se assumir diferente, obscuro aos olhos dos outros. Como se tivesse um aleijão que mantinha escondido. Seria um deficiente social.
Como seria em outro plano, quando se fosse da Terra, como seria? Assim pensava no momento seguinte ao “ato obsceno”. Continuaria na mesma paixão pelo irreal?
A dúvida sempre ficava: a mulher que ele havia tecido em seus libidinosos pensamentos e comparecia a seu leito em suas horas de desespero, era anjo ou demônio? Mas de uma coisa tinha certeza: o pecador era ele e jamais a deixaria!
3 comentários:
Como estou finalizando minha filiação à REBRA, recebi hoje um e-mail indicado texto seu. Vim aqui, também, e me deparei com esta delícia de texto! Parabéns!
Cinthia, você deve ter seus motivos para sair da REBRA. Mas feliz estou em recebe-la em Artes e artes. Gostaria de conhecer seu trabalho.
Um grande abraço
Zulede Mesquita Feitosa, por email
Marrinha, minha amiga Maria Luiza (mora em São Francisco) comentou:
Gostei dela. Adorei a comparaçaão de um cardápio sendo o
que "engolimos" todo dia na infância... e o que faremos com
ele quando crescermos...
Postar um comentário