Maria J Fortuna
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Nem sei por que estou no mundo, Dona Maria... Tudo é tão confuso. O que é
importante, as pessoas não querem ver, por quê?
Como
eu iria responder a essa pergunta? Cada paciente ali era um universo atingido
por alguma bomba ancestral, em alguma época da vida e que os fazia enxergar o
mundo retorcido, desfocado. Ou pelo menos sem dimensões padronizadas. Mas a
ótica de cada um deles trazia sua própria verdade dentro da aparente
incoerência. Marina era uma das que se podia chamar de fronteiriça. Passava as
noites acordada com seus monstros, numa visão de martírio no mundo. Sempre
alguém era flagelado ou morto, cortado em pedacinhos em seus pesadelos. Ou ela
mesma se sentia caindo de uma torre altíssima e dali se estraçalhando no
asfalto. No dia seguinte, cabisbaixa, torcendo um lenço nas mãos, parecia
distante, insone, mas surpreendia com um grau de lucidez absurda! Adotava estratégias de sobrevida como
escrever e desenhar no muro do Ambulatório. Gostava do azul e amarelo. Mas havia momentos em que, durante uma
conversa, alienava-se do assunto de que estávamos tratando e partia para bem
longe... Lá, onde só ela podia ir. Deitava um olhar distante na parede branca da
sala de entrevistas e não dizia mais nada. Até que eu a despertasse chamando-a
pelo nome.
Um dia, após o atendimento com Marina saí reflexiva, pensando que ela parecia
um casulo, como aqueles que se prendiam nas paredes da minha sala, que não quer
se romper e mostra apenas a pontinha da asa de borboleta em sua agonia por
nascer. O que aconteceu na vida da moça que a fazia ter medo de enxergar, ou
tentava ignorar o que via a todo custo? Às vezes não era miopia, mas excesso de
visão.
Num dia ensolarado de setembro encontrei um bilhete de despedida encima
da minha mesa que dizia:
Dona Maria,
Não vejo sentido para se viver se estamos
sempre caminhando para a morte. Por que estou aqui? O doutor me deu alta. Como
posso receber alta estando na baixa? Vou pra qualquer lugar, menos pro mundo. Deixo
uma poesia minha pra senhora.
Marina
Curiosa e preocupada, continuei
lendo o bilhete onde estava escrito:
“Todos os pés de alecrim
murcham ao sopro do vento
Cavalgando em meus sonhos
Não vejo nenhuma beleza nos pés
de trigo
Meus cavalos são cinzas
Não são verdes ou azuis"
Guardo até hoje o papel
amarelado com os rabiscos de Marina e penso que o mais difícil foi suportar meu
o sentimento de impotência diante do drama. Ajudá-la a ler o mundo e aceita-lo
com suas torturas, mostrar que, apesar de tudo, as crianças continuam a brincar
e os pássaros a cantar, como faria isso? Aliviá-la um pouco do sofrimento de enxergar o
mundo sempre desfocado. Por que só medicamento, poderia aumentar sua
serotonina?
Se ela fosse capaz de aplacar
seus delírios noturnos escreveria aquela poesia? Nunca mais soube de Marina.
Um comentário:
Sra. Ida Luppi, por email:
Suas crônicas são demais > No seu blog Marina : Fala com ela que eu tenho um pé de alecrim na minha janela e está sempre viçoso com o vento sempre faço um chá suas folhas Bjs Ida Linda crônica a pomba branca
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