Maria J Fortuna
Depois de trinta e sete anos em BH, voltei ao Rio de Janeiro, onde passei a infância. Por aqui, já faz um tempinho que estou recuperando o sentido das coisas que me cercam e o significado delas. As circunstâncias empurram a gente como se fôssemos bola de futebol num campo de jogadores que ora perdem, ora ganham. E assim prosseguimos nessa vida repleta de perdas e ganhos, num jogo que só se acaba quando mudamos para aquele outro campo que absolutamente não conhecemos e de onde ninguém nos dá noticias...
Arrumei, com carinho, meu novo quarto em casa da tia idosa com quem vim morar. Quando tudo estava pronto, fiquei tentada a convidar algumas pessoas para inaugurá-lo. Só que, de repente, lembrei-me que cá no Rio de Janeiro não tenho mais amigos. Os que tinha, quando jovem, já casaram, mudaram de endereço e não me deram mais notícias.
Quando eu estava caminhando na Rua das Laranjeiras, pensando na tal inauguração, pensei numa pessoa que jamais faltaria ao evento: minha mãe! Que importa se já está vivendo no campo de lá?
Foi fácil para mim, retroagir no tempo e vê-la com aquele vestido cuja estampa parecia o papel que envolvia o vidro de Sal de Frutas ENO, um remédio usado contra azia e dor no estômago nos idos anos 50 do século passado. O vestido tinha um fundo preto com florinhas coloridas tal qual a embalagem do remédio, e era de seda. Minha mãe tão sorridente, magrinha, sem aquela torturante asma que lhe custou tantas noites sofridas, pele de jaspe, lindos cabelos castanhos já meio grisalhos, ondulados e soltos, olhos bondosos, usando aquela meia quase transparente, com a costura meio tortinha atrás, parecendo que desfiaria a qualquer instante. E ela nem reclamava... Sapatos de saltos, mas quase baixos, e uma bolsa de couro, sempre combinando com os sapatos.
Viria com sua sombrinha de cabo madrepérola. Com os lábios discretamente revestidos com batom de suave tom vermelho, que ela só usava em festas familiares. Não comparecia a nenhuma outra.
Ela teria mais de cem anos agora. Mas gosto de lembrá-la ainda moça, com toda aquela energia tão suave quanto o tom vermelho do seu batom. Sou, além de filha caçula, um rebento nascido tardiamente para aquela época. Uma filha temporã, de gravidez escondida como se fosse a de alguma menina moça que se tornara mãe precocemente. Mas fiquei sabendo ter sido por vergonha de ter mais um filho em idade avançada, com o marido desempregado, durante a feia crise pós-guerra dos anos 40. Com isto, tive-a por menos tempo que os outros filhos, que eram três.
Ela iria envolver meu quartinho com seu perfume de alfazema misturado ao pó de arroz cheirando a flor de maçã. O privilégio de sentir este doce perfume não era reservado apenas aos que lhe beijavam a face. Era como se incensasse todo ambiente de uma forma mágica. Manha gostosa de tudo que cheira a mãe. Por fim, ser abençoada pelo gesto acolhedor do seu abraço! Eu me sentia como envolta em lençóis de cetim tal o seu amor e a maciez de sua pele!
Sentaria na cadeira de honra do novo quarto - a que tem almofadas bordadas com carinho - iria desfiar um longo rosário de elogios bondosos a minha humilde decoração. Os dedos suavemente mexeriam com meus cabelos naquele gesto gostoso que sempre precedia a célebre frase em que ela manifestava, delicadamente, sua estranheza a meu respeito:
“- Eu só queria saber o que se passa nesta cabecinha....”
Tenho uma cama confortável, um móvel para computador e nele farei todas as viagens que meu coração pedir. Desde ver fotos antigas, até escrever crônicas e poesias. Faz parte ainda do meu pequeno espaço, uma estante com delicadas estatuetas de anjos, um porta-CDs que, em sua maioria, são de músicas clássicas e MPB, e muitos livros. Há uma janela que dá apenas para a parede de outro prédio e é só. Não cabe mais nada!
De qualquer forma, rompendo as cortinas do tempo, numa visão surrealista, minha convidada de honra acaba de chegar! O abraço é longo, saboroso, acolhedor como sempre, apertado, sentido e saudoso! Minha mãe cheia de encantos ilumina completamente meu pequeno quarto. De um jeito tal que aqui só cabe felicidade!
Quem disse que o amor não existe? Quem disse que ele não viaja no tempo e se desloca anos luz ou mais que isto, para soprar tudo de bom no coração da gente? Quem disse que aqueles que vivem em nossas lembranças são fantasmas? Quem disse que um grande desejo de encontro se realiza apenas fisicamente? E quem disse que não podemos receber a flor de quem amamos?
Eu e minha mãe dançamos ao som de uma valsa, pisando medos, mágoas e cupins de receios mal fundados. Eu me sinto pequenina em seu regaço, como sentia quando me fazia dormir. Eu lhe digo que o tempo não é tão mau, ele me espreme, cada vez mais, para que nosso encontro aconteça também do lado de lá. Aí será minha vez de chegar, mas não como visita.
Pouco quero saber agora das maldades do senhor tempo, que a levou tão cedo para longe de mim. Agora ele não mais existe. Ela está aqui, acarinhando meu mundo e dando-me notícias de Deus através do seu amor.
Pronto! Meu quarto acaba de ser inaugurado!
Um comentário:
Bom dia Maria!
Domingo, acordei pensando em lhe escrever e "encontro-me com sua mãe tão suave e tão familiar". Lembrei que voce já nos a havia apresentado. Maravilhoso como voce escreve, sente e descreve esta imensa ausencia. Lembrei fortemente da minha Mãe que muito cedo nos deixou e que todos os dias continuo sentindo sua falta. Conto-lhe que compartilhei sua cronica no Twitter, pois acabo de inscrever-me nesta rede social, que segundo especialistas em breve sobstituirá o Facebook : https://twitter.com/RosaneMartha
@RosaneMartha
Um forte abraço! Rosane
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