quinta-feira, 10 de agosto de 2017





                                                   Minha Cidade

                                                                                               Maria J Fortuna


                    A cidade da gente é aquela que tem um cheiro especial, luminosidade só dela, clima que nos envolve desde os mais remotos anos e permanece na memória de cada célula. Assim sendo, dentro do meu coração está, linda e inteira, São Luís do Maranhão, uma doce Ilha no Nordeste do Brasil e Terra que me viu nascer!
                    A mais significativa lembrança da minha infância é o quintal do sobrado, onde comecei a desenrolar o fio de minha vida – o casarão de azulejos azuis que possuía mirante e porão, como muitas das antigas construções maranhenses. A cadeira de embalo, onde me deitava ao colo do meu avô, olhando as árvores que habitavam o grande quintal e sentindo o perfume das goiabas que caiam na sombra de suas copas cheirosas. O barulhinho do córrego, as margaridas e açucenas, compunham meu mundo encantado! Assim como o alento do sol e os mistérios das chuvas. No azul do céu meu avô apontava nuvens, chamando-as de urso, girafa, elefante e ainda havia o canto dos passarinhos, de modo especial do bem-te-vi, sabiá e alguns canários. Pombos e pardais gostavam de pousar nas telhas da casa. Em dias especiais o céu se enchia de carneirinhos... então meu avô desenrolava as histórias que moravam em sua alma bondosa. Era como se abrisse o peito, donde ecoava sua voz grave, e de lá saísse voando um panapaná* de borboletas azuis! Algumas, aos três anos de idade, eu não compreendi muito bem, mas eram como se fossem pétalas de flor retiradas uma a uma, até chegar no pistilo redondo, que esparramava seu pólen e fecundava mais e mais histórias...
                    Lá pelas tantas horas da manhã, recendia o cheiro dos pratos gostosos vindos da cozinha, onde eram preparados os mais saborosos quitutes como: arroz de cuxá**(mistura de gergelim, farinha seca e camarão seco e pimenta de cheiro). O ingrediente especial - a vinagreira – hortaliça africana, muito comum no Maranhão, dá o toque especial ao prato, ou arroz de jaçanã, uma ave nativa feita garça. A fritada de bobó de camarão e o cozido, não podiam faltar, entre outros pratos típicos da Ilha de clima tropical, quente e úmido. Enfim, abundavam frutos do mar no cardápio.
                    Lá pela tardinha, eu, minha irmã e a empregada da casa, íamos à Beira Mar, ver os navios que ancoravam distantes, por não haver, naqueles tempos, porto na Ilha. Havia tarde em que a gente ouvia música partindo do navio, o que estimulava nossa fantasia, de que poderia estar havendo algum baile. Ao pôr do sol as águas do mar dançavam, refletindo os últimos raios de sol. O inconfundível cheiro de maresia tornava-se mais forte à medida que ia escurecendo. E o mar ficava escuro, batendo na muralha de pedra,  quando não havia lua, aumentando seu mistério. Em outros pontos da Ilha, os pescadores estavam chegando de longa pesca, com camarão, peixe pedra, caranguejo e outros frutos do mar. Ali, conforme a maré, a gente conseguia compra-los fresquinhos. Às seis horas da tarde, o perfume de rosas, jasmins e incenso, anunciando a hora do Ângelus. As crianças partiam para o banho. Hora de receber o pai que chegava cansado da labuta diária. O jantar era servido. A empregada da casa tratava de arrumar a cozinha depressa, para finalmente descansar, contando historinhas de fantasmas e curupiras***para as crianças da família. Eram de arrepiar os cabelos! Depois cada um ****armava sua rede e o sono chegava bem cedo.
*Panapaná: coletivo de borboleta na linguagem indígena.

**Arroz de cuxá: um que pode ser considerado símbolo da culinária maranhense. Seu preparo mistura ingredientes como camarão seco, cuxá (chamado também de azedinha, quiabo azedo e vinagreira) e gergelim.
Vinagreira: hortaliça de origem agricana, com sabor acre, muito comum no Maranhão.
***Curupira – Ser fantástico que, segundo a crença popular, habita as florestas e é o protetor das plantas e dos animais. Referido desde o século XVI, o curupira é descrito com a estatura de um menino com os calcanhares para frente: suas pegadas enganam os caçadores e seringueiros, que se perdem nas florestas. O curupira também faz as pessoas se perderem imitando gritos humanos.
****Armar a rede: abrir a rede que fica pendurada no quarto dos solteiros, para dormir.

                     Quando comecei a frequentar a escola, fiquei sabendo mais a respeito da minha Terra Natal tão cheia de poesia!  Ela foi habitada por índios Tupinambás e fica entre a baía de São Marcos e São José de Ribamar, no Atlântico Sul. Nesta última, costumávamos passar as férias
escolares. Em 1612 chegaram os franceses e o nome São Luís foi colocado em homenagem ao Louis IX, rei de França. É a única capital brasileira colonizada por franceses. Por isso temos algumas palavras derivadas do Francês.  Esteve também sob o controle holandês 1641 a 1644, quando a economia tinha por base a exportação de cana de açúcar, tabaco e cacau. Por volta de 1860 exportava algodão para a Inglaterra. Depois vieram os portugueses que sempre brigaram pela posse daquela Terra e foram responsáveis por sua edificação. Hoje em dia a pecuária, agricultura e pesca artesanal fazem parte da economia do Estado maranhense. Além de ter aumentado a produção de soja, arroz e milho, a mandioca é muito cultivada.
                    Quando estive na cidade do Porto, Portugal, contemplei os azulejos da minha Terra nos velhos casarões daquela cidade! Talvez seja pela predominância do azul, ton sur ton, que até hoje a tenho como cor predileta para pintura de casas e edifícios. Um dia, já na década de 90, quando fui à casa de uma família em Belo Horizonte, Minas Gerais, lamentei profundamente ver os azulejos de São Luís, decorando a copa. Por isso São Luís corre o risco de perder o título de “Cidade do Azulejos”, como é conhecida por muita gente. As demolições hoje em dia são grandes e de muitos casarões foram retirados azulejos originais.
                    A Ilha é abastecida pelo rio Itapecuru. Existem ainda os rios Bacanga, cujo parque se encontra preservado até hoje e o rio Anil. Quando íamos para nosso sítio, um pouco afastado da Capital, eu me deliciava ao ouvir as canções das lavadeiras de busto nu, batendo roupa ensaboada nas pedras e taboas de madeira, a beira das águas que corriam por aquelas terras. O banho de rio, por causa do perigo de afogamento, era supervisionado por nossas mães. Quase sempre perdíamos uma peça da roupinha branca com que nadávamos ali, quando a correnteza se tornava mais forte. Quando comecei a ler Monteiro Lobato, tinha medo de que aparecesse por lá um peixinho atrevido que se apaixonasse por mim e me pedisse em casamento. Como aconteceu com a menina Narizinho, uma de suas principais personagens. Não era ideia mito boa ser carregada por aquelas águas escuras e frias, até o castelo do Príncipe que morava em suas profundezas, pensava eu. Do arrepio das águas geladas ao medo do peixe real, havia arrepios e tremores, até que minha mãe me enrolasse numa toalha macia e felpuda.
                   No sítio havia frutas maravilhosas, típicas da Mate Atlântica: murici, bacuri, abricó, jacama e outras. Era como se os deuses, brincando de guardar segredo, tivessem soprado delicias dentro de cada uma delas! No pós-guerra mundial, onde a recessão foi grande, meu pai ficou desempregado e, graças aos doces que minha mãe fazia daqueles frutos maravilhosos, sobrevivemos. Ela os vendia aos aliados que desembarcavam no estratégico aeroporto de São Luís.  Dentro de um velho tanque emborcado, de azulejos danificados, eu ficava brincando de boneca com a filha da caseira, ouvindo os babaçus caírem nas águas do poço.
          ***** - A Mãe D`Água está dormindo... falava a menina, falava a menina, e eu torcia para que o barulho dos babaçus não a acordasse a mulher peixe encantada**** Sabia que, além dos poços, ela costumava frequentar a Lagoa Janssen, com seis mil metros quadrados de área e diversos manguezais. Toda Mãe D´Água gosta de poços e lagos, dizia minha companheira de folguedos.

*****A Mãe d´Água - Trata-se de uma figura com mistura de mulher com peixe. No rio Itapecuru, ela aparece ás suas margens. Carrega crianças deixadas pelas mães na beirada. Penteia seus longos cabelos com pente de ouro recoberto de pedras preciosas que enlaçam os rapazes que são levados para o fundo dos rios e nunca mais voltam.

                    Aprendi que no século XVIII, fase de ouro da economia maranhense, São Luís viveu grande efervescência cultural.  Era a cidade brasileira que mais se relacionava com as capitais europeias e com outras capitais do Brasil.  A literatura e a poesia germinaram com grandes escritores e poetas como Graça Aranha, Raimundo Correia, Humberto de Campos, Coelho Neto, Gonçalves Dias Mais recentemente tivemos Josué Montello e Ferrreira Goulart, dentre outros. Não é à toa que São Luís recebeu o epíteto de Ilha do Amor, por tantos famosos da literatura que a louvaram em prosa e verso. Nesta Capital considerada na época de Atenas Brasileira, foi editada a primeira gramática portuguesa no Brasil. Mesmo no século XX estava eu em casa do meu avô, com grande laço de fita na cabeça, declamando poesias em cima do piano. Eram os saraus que minha família proporcionava aos intelectuais frequentadores do sobrado. Ali nasceu um jornal literário famoso no Maranhão – O Ateneu.
                    Em 1997 quando a cidade foi tombada pela UNESCO, considerada Patrimônio Cultural da Humanidade, eu tinha vindo para o Rio de Janeiro e depois para Minas Gerais.  Além de ter deixado toda aquela magia, tinha saudades das festas da Ilha. Particularmente o Bumba meu boi, tradição folclórica afro indígena, que aflora no mês de junho. Junto com as festas juninas em louvor a Santo Antônio e São João. Estas festas iluminam São Luís, por várias noites! Minha mãe costumava compor pequenas canções para que meus dois irmãos participassem do evento. Eu me lembro de um pedacinho de uma delas: “Boi mimoso do curral, quem te ensinou a dançar, foi no palácio da rainha, onde o rei foi passear...! Na minha memória poética ainda sonho com o boi vestido de negro com miçangas prateadas e douradas, cheio de esvoaçantes fitas coloridas nos chifres, dançando ao clarão da lua. Os homens abriam a roda cercando o boi que dançava girando. Alguns eram homens rudes, bêbados de tiquira******, que ficavam alegres com suas fantasias multicores, do mesmo tecido e enfeite da roupa do boi. Outros faziam parte da festa usando penas de índio. Eram enormes os cocares! *******Dançavam até de madrugada ao redor do boi, que, através dos movimentos do homem que o representava, fazia evoluções em círculo, enquanto alguém contava sua estória. Dependendo do lugar, iluminado por uma fogueira. Era o tempo em que a gente ainda contava as estrelas perdendo a conta...

******Tiquila: bebida que surgiu da tradição indígena de aproveitar a mandioca para quase tudo, inclusive para fazer agua ardente
*******Cocares: Um leque de pena que os índios colocam em suas cabeças. As disposições das cores do cocar não são aleatórias. Além de bonito, ele indica a posição do chefe dentro do grupo e simboliza a própria ordenação da vida em uma aldeia Kaiapó.
Candomblé: religião afro-brasileira.
Assombração: Alma do outro mundo

                    Em julho, durante as férias escolares, nossa família partia para São José de Ribamar. Lá eu esperava ansiosa pela Festa do Divino em louvor ao Espírito Santo, culto marcado pelo sincretismo religioso. A tradição foi trazida pelos portugueses e recebeu contribuição de culturas indígenas e africanas. Começa na Igreja Católica e termina no Terreiro de Candomblé. Eu adorava ver as crianças vestidas de Imperador e Imperatriz, herança portuguesa, com a imagem da pomba branca na almofada de veludo com a figura do Espirito Santo bordada na bandeira branca e vermelha. Há partilha de alimentos durante o evento. A criançada fartava-se de bolos e doces com glacê colorido e guaraná Jesus, uma refrigerante cor de rosa que só tem no Maranhão. Pela fé do seu povo cuja a etnia vem do branco (em sua maioria portuguesa) índio (povo nativo) e negro (que veio da África para ser escravo), não conheço povo mais messiânico do que o maranhense! Quanto ás festas profanas o carnaval era a mais famosa na Ilha. Havia muita alegria pelas ruelas e ladeiras estreitas da cidade, durante aquela festa! Muitos blocos de rua e alegria nos clubes! As crianças tinham medo de uma figura típica do carnaval maranhense – o fofão! Eram foliões com macacões estampados e fofados, com máscaras horrendas, grunhindo sons igualmente horríveis! Passavam o carnaval pulando, gemendo e se divertindo com o medo dos pequenos. Pareciam assombrações! Quantas vezes, quando menina, eu tinha pesadelos com os fofões! Lembram palhaços da Comédia Del Arte. Essa tradição é bem forte no Maranhão, onde os blocos populares se misturam aos brincantes e ás bandinhas tradicionais. Fiquei sabendo que os carnavalescos fofões estão sendo proibidos atualmente no carnaval maranhense, o que vai descaracterizar bastante a tradição desta festa na cidade.
                    São Luiz era muito católico em meus tempos de menina! As Igrejas coloniais superlotadas para as Missas de domingo. Até hoje gosto de entrar na Igreja lembrando o perfume das angélicas misturado ao incenso do altar-mor!  Ainda ouço a voz do padre, rezado em latim, ecoando nas encruzilhadas do meu passado.  Durante a Missa ou Adoração ao Santíssimo a magia dos santos me deixava completamente embriagada de misticismo! Lembro-me devota, com a cabeça coberta por um véu branco, acompanhando os meus pais nas procissões. Ou no meio das meninas vestidas de anjo.  Não tinha procissão sem anjo. Minha mãe de matilha preta, dedilhando o terço e meu pai segurando uma vela, todo de branco em seu terno de linho. Durante o Natal havia a Pastoral onde as crianças vestidas de roupas típicas de diversos países, em par, adoravam Jesus Menino. O sincretismo religioso estava sempre presente. Havia grandes “Terreiros” em que nossa empregada cabocla, no meio da noite ou para a madrugada, se unia em surdina, aos irmãos do Tambor de Mina e ao Tambor de Crioula, religião afro-brasileira. O Maranhão foi importante núcleo de atração de mão de obra africana, sobretudo durante 1750 a 1850. No Terreiro, as pessoas entravam em transe e possessão. Diziam que elas estavam “atuadas”... o que dá na mesma. Certo dia implorei aquela moça que me levasse com ela para a festa do Tambor, no que ela concordou desde que eu não dissesse a minha mãe.  Pude então contemplar de perto, com os olhos cheios de surpresa e encantamento, a dança daquelas mulheres com saia de chita rodada, cantando misteriosas cantigas numa língua que eu não compreendia, girando ao som das batidas dos tambores tocados pelos homens. Tudo aquilo acelerava meu coração infantil, no meio de uma clareira no mato. Era uma experiência fascinante! Guardo com carinho, uma bolsinha de fibra de buriti até hoje usada para produzir peças artesanais como tapetes e chinelos. Assim como o Tambor de Mina, no Tambor de Criola as pessoas também se reúnem em círculos que chamam de Terreiros, e é de origem afro indígena, em homenagem ao santo negro São Benedito, muito venerado pelos católicos e umbandistas maranhenses. O toque pitoresco é que as mulheres, saias rodadas e torços na cabeças, cumprimentam umas ás outras pela “umbigada”. Quero dizer, batem com a barriga, na que está no centro da roda, convidando-a para dançar. Assim por diante. Essas são doces lembranças...
                    Ah! São Luís! São Luís! Tive que deixá-la ainda menina em botão, mas quando retornei há uns dez anos atrás, me vi envolta pela mesma atmosfera de sonho que me viu crescer até os oito anos de idade. Lá estão as palmeiras, ladeiras e ruas com nome pitoresco como: rua das Flores, dos Enforcados, do Alecrim, da Alegria, da Saudade.... Creio que fruto de um povo que vive em nostalgia romântica e é profundamente sonhador e poético. Como diz o grande poeta maranhense Gonçalves Dias:

                    Em cismar sozinho, á noite,
                    Mais prazer eu encontro lá
                     Minha Terra tem palmeiras
                     Onde canta o sabiá
                    
                    Não permita Deus que eu morra,
                     Sem que eu volte para lá
                     Sem que desfrute os primores
                     Que não encontro por cá;


                    Por mais que eu tenha trilhado outros caminhos neste imenso Brasil, jamais a esquecerei, tão impressa se encontra em minha alma! Sempre a reconhecerei! Basta recordar o cheiro e o sabor dos alimentos, o colorido da paisagem, a chuva de hora marcada, o sotaque tão familiar e, sobretudo, o toque afetivo dos conterrâneos! 

                                          






6 comentários:

Unknown disse...

Adorei!
Texto primoroso e envolvente.

MJFortuna disse...

Obrigada, Laura! Naqueles tempos, ates da família Sarney se apossar do Maranhão, era assim...

MJFortuna disse...


ALFRENICE FORTUNA COSTA
18:43 (Há 22 horas)

para mim
Olá prima , li com mamãe a sua cronica sobre a nossa cidade, achamos muto linda as suas palavras que nos fez relembrar muitas coisas do passado. Bateu saudade, você escreveu muitas coisas boas relembrando também a história de nossa terra. Parabéns pela memória maravilhosa que você tem . Que Deus lhe abençoe. Um grande abraço para Fernanda ,Benjamin e Nicolás. Beijos Nice e Eunice.
Enviamos para o Paulo meu primo que é jornalista que você deve conhecer, ele vai gostar muito e mora em São Luis.

MJFortuna disse...

Obrigada, prima. Que bom você ter mandado para o Paulo!
Um abraço

MJFortuna disse...


dri.brito@uol.com.br
13:49 (Há 6 horas)

para mim
Texto lindo Maria. Estive lá uma vez. Gostei muito. Parabéns.

--
Enviado do aplicativo myMail para Android

sexta, 11 agosto 2017, 09:54AM -03:00 de Maria de Jesus Fortuna Lima mjflima85@gmail.com:

MJFortuna disse...

Obrigada, Dri! Que bom que você esteve lá...

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