Maria J Fortuna
Minha família sonhava ver brotar-lhe no seio crianças loiras de olhos azuis. Mas éramos todos claros, de olhos e cabelos castanhos. Quando completei quatro anos de vida, uma de minhas tias começou a tingir meus cachos castanhos de loiro. Passava um chá de marcela, preparado que ía clareando os cabelos, aos poucos. E, como na infância, era fã de Shirley Temple, encomendou com um marceneiro, um pauzinho polido para enrolar meus cachos tal e qual os da menina americana. Eu era sua boneca, que cantava e recitava para as visitas feito criança prodígio. Como professora do Jardim de Infância, não me deixava brincar com meninos, que eram considerados brutos por ela, e vigiava minhas amizades. Teria que “andar com menina de primeira”, no seu linguajar. Coisa a que nunca obedeci. As meninas de primeira eram aquelas de família que tinha tradição. E, para completar o rosário absurdamente discriminatório, teriam que ser brancas. Enfim, minhas tias só faltavam colocar-me numa campânula de vidro para me isolar do mundo.
Eu era uma criança franzina e tímida, mas travessa por baixo dos panos, ou seja, eu era o que chamam de “sonsa”. Mas minha irmã era o oposto. Três anos mais velha que eu, puxou a família cearense do meu pai, de quem herdou o gênio rebelde. Nunca se conformou com o paparicar das tias em torno da minha figurinha aparentemente frágil. Morena clara, com cabelos bem lisos e negros como as asas da gruaúna, como dizia meu pai, franginha e olhos inteligentes, era o terror das professoras por causa do seu comportamento inquiridor e indisciplinado. Costumava ser convocada para tomar conta de mim na Missa dos domingos, porque eu morria de medo de padre na primeira infância. E influenciava minha cabecinha pseudo loira com suas aventuras e descobertas precoces. Mas o que mais me dava alento era quando dizia: - Se alguma menina quiser te bater tu dizes que tua irmã é índia! Medrosa como eu era, aquilo foi um ganho e tanto! Levei ao pé da letra: ninguém podia mexer comigo porque minha irmã podia avançar com arco e flecha. E as coleguinhas me tinham o maior “respeito”. Passavam a mensagem de uma para outra: – Cuidado, a irmã dela é índia!
Um belo dia de aula, na hora do recreio, uma menina que tinha o mesmo nome que eu, veio me beliscar. Por sinal, a garota também usava cachos nos cabelos negros. Tínhamos sete anos de idade. Olhei em volta para ver se minha irmã estava por ali. Nada. Ameacei: - Vou chamar minha irmã que é índia. Nada. Comecei a ficar aflita e recebi outro beliscão. De repente um fogo tomou conta de mim e eu crispei as mãos. Um suor brotou na testa, pelo excesso de calor, e comecei a tremer de tanta tensão. Quando a menina arriscou o terceiro beliscão, parti pra cima dela! Agarrei seus cachos e sacudi -lhe a cabeça. A revolta era tão grande que eu não conseguia soltar os cabelos da menina. A professora apareceu por trás do grupo de crianças que gritava: - Pega! Pega! E eu não soltava os cachos da coleguinha. Por fim vi, meio de relance, minha irmã torcendo: - Bate! Bate mesmo!
Não sei até hoje o que disse a professora para que eu soltasse a guria, mas foi a glória! O sentimento de orgulho de mim mesma! Pela primeira vez, não tive que apelar por proteção da minha irmã índia!
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Mariinha, que delícia essa crônica, aliás, vc é cronista nata, nem precisava escrever, bastava contar..Escreve para registrar.
Um abraço:
Clevane
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