sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A dor maior


Maria J Fortuna

Não existe maior dor no mundo que a ameaça de se perder a própria identidade. Conheci uma mulher sob esta ameaça. Ela se chamava Nazira. Veio, com sua família pobre, do outro lado do mundo, para o Brasil, após a segunda grande guerra.
Nazira tinha quase sessenta anos, cabelos grisalhos e olhos quase negros, corpo ainda delgado. Possuía uma beleza comovente, mas era uma pessohermeticamente fechada em si mesma.
Com o tempo perdeu os pais, seu companheiro foi trabalhar no Japão e não deu mais notícias. Tinha um filho que partiu para os EEUU, Disse que ia fazer “pé de meia” e , como o pai, não mais se comunicou. Trabalhou como operária de uma fábrica durante muitos anos para manter-se e a seu filho.
Ela me apareceu, no cair da tarde, no Posto Médico de Belo Horizonte, encaminhada por seu psiquiatra. Pediu licença e entrou na sala. Nunca mais vou me esquecer do seu olhar de pânico...
Depois das apresentações ficamos as duas, uma diante da outra. Eu só tinha dentro de mim um coração aberto e cheio de compaixão, Sentir o outro quando está em crise existencial é um desafio imenso à nossa capacidade de empatia. Como os atores. procuramos dentro de nós mesmos alguma referência para compreender o que se passa, e nem sempre somos felizes neste empreendimento. Mas aquela senhora sabia exatamente o que lhe estava acontecendo e essa consciência fazia-me sentir impotente e desconcertada, o que não podia me acontecer como profissional numa entrevista.
Custou-lhe verbalizar seu pânico, mas depois, quando me sentiu receptiva para ouvi-la, sem julgamentos, iniciou sua fala.
- Tive uma infância difícil. Além da guerra, perdi meu pai cedo e fui criada pela minha mãe, que sofria de epilepsia. Fui criticada na escola, porque só tinha um uniforme doado pelas freiras que me chamavam de Crominho, porque diziam que eu parecia uma criança de cromo. Casei-me muito cedo e nunca me ajustei ao marido... Mas não queria que ele partisse, apesar de tudo... O filho a quem amo, foi embora para longe, tudo isto me aconteceu....
Fiquei na escuta procurando acolher.
- Tudo isto vivi, mas eu estava presente. Agora ameaço sair de mim mesma. E este sofrimento é maior do que todos os outros por que passei em minha vida! Esta, agora, é minha dor maior!
Como fazer alguém se sentir seguro a ponto de ter certeza de que a própria identidade não vai lhe fugir?
Procurei seu psiquiatra, tracei um plano de tratamento encaminhando-a para uma psicóloga, que eu sabia ser competente. Seria um tratamento multiprofissional. Nazira estava com medo de se perder de vista. Lembrei-me de Van Gogh e de todos os que se buscaram e nunca se encontraram. Concordo com Nazira. Não há dor maior do que não mais se reconhecer e ter lucidez para acompanhar sua própria imagem, tornar-se fora do próprio controle e fugir... Seria excesso de autocontrole o elemento insuportável que ameaçava Nazira a debandar de si mesma? Creio que não...
Depois, veio a segunda fase do tratamento: aceitar tomar medicamento para o resto dos seus dias. Foi outra luta. Ela teria que aceitar que ficaria bem apenas quimicamente compensada. Já havia lidado com alguns casos assim e sei que é muito difícil. Tratamento alternativo não existe para estes casos, nem a força da fé, porque, dentro daquele ser, o amor está doente e há como consequência, quebra de confiança em Deus e no mundo. Não tenho dúvidas de que Nazira tinha razão. Esta é a dor maior! Tenha o nome de psicose, esquizofrenia,ou neurose obsessiva compulsiva. É a doença da dor maior, enquanto existir lucidez, não interessa seu grau.
A segunda etapa foi satisfatória e ela voltou à vida normal com ajuda dos medicamentos. Não tão normal depois de ter descido alguns palmos de um enorme precipício. Pois quem vive esta experiência jamais a esquece e todos os chamados problemas ou dificuldades do dia a dia ficam pequenos,.São os chamados “desligados do mundo” ou “ não estão nem aí” Pouca importância dão as coisas que os rodeiam, principalmente as fúteis. Não confundir com autistas. Desconfio que esta é a noite negra dos místicos, onde Deus se esconde, Sem dúvida é o apagão da alma.
Agora me pergunto: como o falho sistema de saúde brasileiro – o SUS – está preparado para receber pessoas nas condições de Nazira e dar-lhe tratamento adequado?

Um comentário:

MJFortuna disse...

Comentário de Isis por email


AMIGA ,AMEI A HISTÓRIA DA SENHORA NASIRA
ESSE É O NOME DE MINHA MÃE E TBM DE MINHA FILHA DO MEIO
ELISA NASIRA

OBRIGADA POR ME MANDAR .ME DIZ COMO VC ESTÁ.
BEIJOS

Quem sou eu

Minha foto
Sou alguem preocupado em crescer.

Arquivo do blog

Páginas

Postagens populares