Maria J Fortuna
Faz tempo em que assisti à peça Escuta Zé Ninguém. Foi na década de 70 com Marilena Ansaldi, dançando e fazendo o papel do Zé, aquele que vivia preso e estressado dentro de sua couraça frente à sociedade. A peça, baseada nas teorias de Willian Reich sobre as couraças que a gente veste, para se proteger internamente no dia a dia, diz muito do Zé que trazemos dentro da gente e que se perde no enorme fluxo das massas. O oprimido, que não ousa desafiar a tentação do consumo capitalista e das novas crenças que aparecem a todo o momento. Zé Ninguém é engolido no anonimato, junto ao povão, seja por medo ou baixa de autoestima. Apesar da aridez do assunto, houve espaço na peça para a poesia e reflexão. Desde aquela época, eu me encantei pelas teorias de Willian Reich e a descoberta desses “anéis de tensão”, que tanto maltratam o corpo e, sobretudo, a alma. Em outras palavras Reich fez um longo estudo sobre nossas armaduras.
Caminhar com esse tipo de proteção não é fácil. Nada tem a ver com máscara, mas não deixa de ser uma forma dolorosamente dissimulada de ocupar espaço no mundo. Apesar de pesadas e medievais, às vezes são encobertas por sutilezas. E quanto mais sutis, mais perigosas. Conheço algumas pessoas que, ao abraçá-las, sinto como se elas estivessem dentro de uma indumentária de ferro. Um tipo de autoconstrução, que enrijece os músculos e tolhe a liberdade dos movimentos e que é inteiramente ilusório e inútil! Muitas vezes quando percebemos essa vestidura - denso legado – torna-se tarde demais! Mas ela existe e seria falso dizer que não a vestimos quando temos que enfrentar alguém que nos odeia ou despreza.
Num soneto, Antônio Feijó, poeta português, por volta de 1917 escreveu:
Desenganos, traições, combates, sofrimentos,
Numa vida já longa acumulados, vão
Como um paul* contínuos sedimentos
Pouco a pouco envolvendo em cinzas o coração.
E a cinza com o tempo atinge uma espessura
Que nem os mais cruéis desesperos abalam;
É como tenebrosa impávida armadura
Ou couraça de bronze em que os golpes resvalam.
A armadura ou couraça, para ele, é feita de cinzas que envolvem o coração. E cinza quer dizer passado... Essa inútil barreira, criada e curtida entre o eu e o mundo, surge na infância, quando abrimos os braços para alguém que amamos e ele ou ela não nos recebe. Ou quando aquilo que fazemos espontaneamente vira pecado mortal porque alguém, a que demos demais importância, coloca-nos em situação de constrangimento. Quantos talentos estão sufocados dentro de armaduras... Somente mais tarde, no mundo adulto, virá à tona. A partir daí acontece a percepção das “traições e os desenganos”, de que fala o poeta. Então, encobrimos desesperadamente nossa verdade, tentando proteger a fresta de luz que, por algum descuido, escapa do coração, com medo que alguém, por algum tipo de maldade, não a assopre. Acho que existem diversos tipos de armaduras. Do papel de arroz ao ferro. Das necessárias em alguns momentos e a que gruda na alma para o resto da vida. Mas, “Quanto maior é a armadura, mais frágil o ser que a habita”, diz Pe Fábio de Mello, e é verdade. Isso quer dizer que, mesmo de ferro, com o tempo ela se torna enferrujada e começa a ranger nossas dores. Fora o perigo do sufoco. Mas um dia ela cai, quando menos esperamos.
Existe um esplendoroso momento para isso acontecer: aquele em que, ao encontrar e abraçar um amigo, deixo cair toda forma de autoproteção, porque sou recebida e reconhecida exatamente como sou, sem restrições nem preconceitos. No sentimento de confiança que acolhe e nutre. Posso brincar como criança, chorar a viuvez de muitas perdas, falar de tudo sem preocupação com julgamentos, mostrando-me inteira! Nesse momento não estou vestida com nenhum tipo de armadura, mas apenas com um par de asas! E são tão poucos aqueles que podemos chamar de amigo irmão ou irmãomigo... Tais encontros como a flor da vitória régia, demoram tanto a acontecer... Mas há que ter certeza que essa flor virá, ela ressurge sempre ao sol ou mesmo nas brumas de um dia enevoado. Virá com o calor da verdade, que funde qualquer armadura, por mais enferrujada que esteja, porque nesse acolhimento a luz do amor provoca renascimento e esperança!
2 comentários:
Querida poetaamiga,
gostei muito do texto, a gente se machuca muito se defendendo. Nossa doença muitas vezes são nossas defensividades. E é muitas vezes tão difícil deixá-las! Mas tentamos, não é?
Grande beijo
Maria do Céu por email:
EIMARIINHA!
Bemaventurada você, que me aparece nesta manhã com uma crônica que me levou aopassado, quando, também, assisti no Rio o Escuta Zé Ninguém.
Muitofeliz sua abordagem do tema sobre a couraça muscular do caráter.
Vemos/sentimos em nosso corpo o peso das restrições, das defesas que nós mesmos nosimpomos.... talvez para não sucumbir à vida e sua crueldade.
Comisso, perdemos de outro lado, porque nos berça o medo de sermos nós mesmos, denão sermos amados, de expor nossos avessos – ou ao pouquinho deles a que temosacesso.
Enfima condição humana, cheia de possibilidades espetaculares , nem sempre percebe oconfisco destas mesmas riquezas.
Felizmente,muitos conseguem dar voltas, flagrar e seguir caminhos alternativos que levamao desabrochar, à quase plenitude....
Quase porque, nos marca o “pecado original”, que não é pecado, e Deus não nos assinalouassim, como quer o mito do Gênesis.
Éantes sinal que a perfeição, a felicidade não fazem parte, o tempo inteiro, dacondição humana. A dor, o limite, o sofrimento são contingência que,inexoravelmente, carregamos. Atrelado a tudo isso o Desejo que teimoso nãodesiste, e que vez por outra rompe o cerco, para a Vida ou para a morte.
Beijopara você. Continue por perto.
Cecéu.
" Caminhar com esse tipode proteção não é fácil. Nada tem a ver com máscara, mas não deixa de ser umaforma dolorosamente dissimulada de ocupar espaço no mundo."
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