terça-feira, 8 de outubro de 2013

Tornar-se espectador

             


Maria J Fortuna


                     Passando por um prédio em que vivi parte da infância, notei o quanto nele havia se modificado no decorrer dos anos. Desde a cor das paredes, até a nova casa de comércio em sua galeria e as pessoas que conversavam na calçada, com outro tipo de vestuário e novas formas de se expressar.  Mas o prédio que ali estava, sem dúvida era o mesmo desde sua construção. Concretizado o desenho de sua planta, continua a acolher moradores que por lá  nascem, crescem e morrem.  Para mim a impressão é que ele guarda ainda a presença dos que respiraram e transpiraram ali. Alguns falam que é a energia das pessoas que ali moraram,  que  fica por seus corredores e apartamentos do prédio.
Como naquela construção antiga, na tela da nossa memória as lembranças são pano de fundo. Imagens em movimentos repetitivos causam, quase sempre, as mesmas emoções e despertam os mesmos sentimentos do momento em que ocorreram. É um tal de desfilar daqueles que ainda encontramos por aqui  e dos que nunca mais vimos.  Mas o confronto com essas lembranças torna-se necessário, mesmo que tenham sido dolorosos, para que se opere algum movimento de transformação. Do contrário permanecerão como estátuas de gesso. Tudo depende do que crescemos e amadurecemos. E da forma de rever o passado com outros olhos.  Isso se dá á medida em que nos tornamos críticos daqueles acontecimentos. .  Será que conseguiremos apenas observar fatos passados não nos deixando envolver pelos sentimentos que deveriam ter sido soprados para longe pelo tempo?  Mergulhar, ir fundo na dor pode ser a solução. Observar,  tornar-se espectador de si mesmo, pode ser o remédio.  Sentir a energia interior, de cada lembrança e se possível, transcende-las. Será que,  algum dia,  chegaremos a isso?
Mas com certeza, só a dor vestida de amor consegue dar rasteira na arte de guardar mágoas, nos porões desse edifício que construímos dentro de nós mesmos. Alguns sentimentos, aparentemente dormidos, quando acordados, mapeiam a alma com muito sofrimento, trazendo a secura deixada pelo ressentimento, tornando rios salgados de lágrimas, montanhas de mágoas e algumas erupções de ira vulcânicas.  Daí não damos  atenção às flores, pássaros e a água fresca da infância, que também existe no terreno das lembranças...  Mas nem a isso é bom se apegar.  Contudo preferimos os acidentes geográficos da alma como as tempestades com raios e muito barulho!  É bem complicado.  Que bom se a gente mudasse a pele da alma! Deixasse que todo o ranço, cupim e traça ou lodo, saísse de suas paredes quando mofadas pelo apego, e a deixássemos voar livremente!   A alma precisa respirar... É o que poderia nos devolver a capacidade de amar. Pode ser até a pessoa que outrora senti inimiga, mas que me ensinou algo.
Essa coisa de olhar para trás como se estivéssemos ainda por lá, e não como apenas espectadores dos fatos que nos emergem da memória, paralisa-nos tanto quanto o medo.  Apesar de que o trabalho de transformação do eu, em mero espectador de si mesmo, não ser fácil. Mas não há outra saída para os que querem ser livres para viver. Culpar pessoas e acontecimentos não nos leva a lugar nenhum. Que tipo de segurança as muletas do passado nos trazem? Seria possível transformá-lo em nosso aliado? Por que não?
Talvez se fizéssemos o exercício das belas mandalas que os monges constroem com tanto carinho e depois as desfazem com os pés numa dança... Ou os dervixes sufis que giram em torno de si mesmos com uma das mãos recebendo o novo e a outra mão jogando por terra o velho... Seria bom aprender com eles.
O  Mestre Rajneesh, hoje chamado de Osho, dizia: “Observe ( o que se passa dentro de você) profundamente; então você se tornará anfitrião e os pensamentos serão seus convidados. E como convidados eles são ótimos, mas se você esquece que é o anfitrião, e eles passam a ser anfitriões, você está em apuros. O inferno é isso. Recebam suas lembranças, trate-as bem, mas não se identifiquem com eles; do contrário, eles se tornarão senhores.”
Sejamos apenas espectadores do que se passou ou se passa na alma para não agredir o coração. Ele tem que ser livre!

2 comentários:

MJFortuna disse...



Eliana Angélica de Sousa, por e-mail:


11:31 (1 hora atrás)
para mim

Que beleza! Sem palavras! Livre para ser!
Parabéns!
Beijo.

eliana

Fragmentos disse...

Bom dia Maria! Despertar e poder ler seu lindo texto é maravilhoso, um presente matinal! É profundo e introspectivo, de grande sensibilidade e verdade. Palavras sábias como: "Mas com certeza, só a dor vestida de amor consegue dar rasteira na arte de guardar mágoas, nos porões desse edifício que construímos dentro de nós mesmos", diretas, sem máscaras, nos fazem pensar, meditar e reavaliar. É o que estou fazendo agora... muito obrigada!

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