Maria J Fortuna
A mesma coisa de sempre... Remédio em jejum, café da manhã, jornal, telefonemas, saída para ir ao Banco, compras, pintura apressada, leitura dos e-mails, hora do dentista, da aula, do lanche da tarde, jornal na TV, novela, remédio da noite, sono, cama. No dia seguinte começa tudo de novo, quando o que eu quero na verdade é ouvir o canto do galo na madrugada, sentir cheiro de terra, tomar café na hora em que bem entender, passar as manhãs escrevendo crônicas e poesias, comer alimentos saudáveis sem agrotóxico ou sacrifício de animais, cuidar do cachorro, dos gatos (quero ter vários) e plantas, descansar um pouco numa redinha de algodão feita lá no Maranhão, passar a tarde pintando, ver o pôr-do-sol, depois a lua e as estrelas, conversar perto de um fogão de lenha em tempos chuvosos, dormir no silêncio interior e exterior. Ou ser convidada a pegar uma estrada ou embarcar num avião, sem data para retorno, partindo para um lugar quieto, onde há mar ou montanha, em que eu possa expressar todos os rebuliços da alma através da arte! Mas as circunstâncias só me permitem por hora, viver aqui, neste apartamento nesta cidade grande.
Na época de calor, mormaço no Rio de Janeiro. Com isso, aumenta-me o desejo de sair de uma rotina cansativa e atender aos apelos e impulsos próprios da natureza humana, sem dar satisfação a ninguém. Mas, na maioria das vezes, a pressão das circunstâncias e a dificuldade financeira tornam inviável a concretização deste sonho. E a vida segue de forma linear. A rotina é linear: os altos e baixos parecem ser sempre os mesmos, com percurso monótono e o desejo de mudança arrefecido dentro do peito. Fatos naturais como crescimento, velhice e morte, ficam mais pesados na cidade grande, onde o tempo parece campeão de corrida que não deixa espaço para nenhum outro evento.
Difícil é conviver no dia a dia com essa inquietação interior provocada por contradições e conflitos, enquanto escorregamos aqui e acolá em nossas escolhas. Difícil também é cumprir uma agenda com o que realmente nos interessa, quando outras obrigações nos são imputadas, tal como priorizar o que não nos faz felizes. Creio que não há como cumprir uma agenda positiva, tornando a rotina um peso em nossas vidas. Renovar é crescer, transformar. Trazer novidade: nova idade pode ser uma das soluções. Não é bom rotineiramente falar das mesmas queixas, a vitimização, o discurso pobre que não leva a nada, acusações, mentiras, jogos, etc... Haja paciência para com nossas próprias imperfeições, erros, dissabores, exigências inúteis, gafes, perfeccionismos etc. Isso nos exige autoconhecimento e tolerância. Não só para com o outro, mas em relação a nós mesmos.
Em nossa rotina, há sempre um fio que nos prende a um afeto difícil de se lidar. Pode ser por causa do laço de sangue ou um amor profundo que não queremos abandonar. Aí temos que redobrar a paciência e não alimentar muitas ilusões ou expectativa de mudanças, e aceitar o outro como ele é sem julgá-lo. E rever nossa forma de lidar com ele.
No meu caso, diante da rotina em que não consigo priorizar o que realmente me interessa, o mínimo que posso fazer é fechar os olhos à noite e dar graças a Deus pelo apartamento em que moro, a alimentação que não me tem faltado, os amigos que de vez em quando aparecem para bater um papinho ou sugerindo um passeio. A grana que ainda tenho para ir ao cinema, teatro e cuidar da saúde, pois já perdi muitos amigos na minha idade e mais novos que eu, com doenças horríveis como mal de Parkinson, câncer, Alzheimer, derrame, e outros bichos que me assustam mais que a hora da morte. A bênção maior é quando me deito na cama para dormir. O cheiro dos lençóis macios e os quatro travesseiros tentando preencher um vazio. O apagar temporário da mente na vigília maluca do cotidiano traz sonhos que nada têm de rotineiros, fazendo-me cair na misteriosa dimensão do inconsciente. E isso é bom, porque dali muitas revelações nos mostram o que verdadeiramente está acontecendo
O desafio maior é o fazemos com essa rotina. Não creio que a rejeição por ela possa nos levar a algum lugar. Não adianta trovejar e relampear para sair da armadilha externa em que nos colocamos. Sempre me lembro de São João da Cruz quando foi preso num cubículo escuro por oito meses, pela “Santa Inquisição” e, naquelas circunstâncias, compôs seus mais belos poemas! E sua alma nunca foi tão livre! E foi assim que aconteceu com Mandela e outros “prisioneiros” especiais! Então, quem sou eu para reclamar dos dias que se repetem...
A rotina definitivamente não nos torna menos criativos. Claro que em contato com a Natureza, Van Gogh criou sua Noite Estrelada! O espírito criador fala mais alto nessa santa comunhão com a Natureza. Mas a criação é fruto de qualquer momento e independe de lugar. Paciência... Quando não existe possibilidade de mudança no ambiente, há o exercício da liberdade interior, que não pode ser roubada por ninguém! Haja vista Mandela em seus quarenta anos de injusta prisão.
Eliza Lucinda apresenta um espetáculo interessantíssimo chamado Quem tem medo da rotina. Se ainda tiver em cartaz, não perca!
Enquanto as penas das asas estão presas ao corpo e a compaixão for maior do que nós mesmos, o jeito é viver cada dia como se fosse o último, retirando de nós o que existe de melhor na arte de expressar os sentimentos em suas múltiplas formas. Essa é uma forma de colorir a rotina e torná-la bem mais leve!
2 comentários:
Eliana Angélica de Sousa
13:48 (7 horas atrás)
Você escreveu lindamente o ruim e o bom da rotina! Disse tudo que acontece conosco.
Fantástico.
Adorei.
Grata. Parabéns!
eliana
Saudades de você, querida. 2014 pleno de bençãos e muita alegria, para você e seus amados. beijos!
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