domingo, 25 de maio de 2014

Meu primo Fortuna

 

 

 

Maria J Fortuna

 

Diziam que eu era fisicamente parecida com ele. Com meu primo Reginaldo. Sobretudo quando, após o banho, meus cabelos encaracolados eram repuxados pra trás.

– É a cara do Reginaldo essa menina! Diziam as tias.

Com isso eu ficava intrigada na minha cabecinha de criança.  Ele era bem mais velho e homem!  Como eu podia ser parecida com ele?

Reginaldo não podia deixar de ser filho do meu tio mais querido, embora eu não tivesse tido muita convivência com ele. Tio Felipe faleceu deixando o filho ainda pequeno e eu menor ainda.  Ambos eram muito criativos!  Mas nunca me esqueci das suas caretas consertando  a luz do casarão do meu avô. Eram de morrer de rir!

Quanto ao filho, lembro-me de vê-lo debruçado em uma carteira, num recinto de pouca luz, mas que dava para rabiscar seus desenhos.  Em meio àqueles  bonequinhos que acabavam de sair da sua pena, aparecendo rapidamente no papel branco de um caderno cheio delas, das figurinhas que desenhava.   Havia um personagem  que era  tudo de bom para mim: Chamava-se Seu Oforino. Adorava suas aventuras! Eu ficaria muito tempo ali para vê-lo nascer e movimentar-se ainda com tinta fresca, na pena de nanquim do meu primo desenhista.  Não fosse ser chamada por minha mãe por algum motivo.

Existia também o cineminha para os primos e amigos. O precursor do Cine Sesinho , seção da revista do mesmo ano, em que mostrava sua grande admiração pelo cinema.  Reginaldo apanhava uma fita de desenho animado que  eu até então não tinha curiosidade para saber de onde saía, e alguns desenhos seus , e punha numa caixa de sapato iluminada por uma vela e  os projetava  na parede branca da sala.  E toda a meninada assistia, fascinada, ao cineminha. Nós adorávamos!  Era uma festa! Aquele meu primo tinha que ser filho do nosso divertido tio Felipe, que sumia da família vestido de bebê chorão todo carnaval e só aparecia na sexta feira de cinzas... A fantasia incluía um urinol, no fundo do qual ele colocava doce de goiaba e, raspando  o dedo no doce  o comia,     oferecendo aos outros foliões e aos que assistiam ao desfile do bloco nas janelas das casas.   Na sexta feira de cinzas, ele, humilde, comparecia ao Cartório do nosso avô para receber a inevitável bronca por ser pai de família e cair na gandaia daquele jeito.  Foi daí  que deve ter vindo o impagável humor do seu filho.

Depois Reginaldo saiu de nossa Terra São Luís do Maranhão e partiu para o Rio de Janeiro. Com ele foi embora o divertido Seu Oforino,  amigo do Sherlouco,  um detetive gringo,  e surgiram outras personagens que eu lia nas revistas como Tico Tico. Depois apareceu o Napoleão, Mão única, que era uma delícia de figura! Passado tempo, já na década de 60, encontrei Reginaldo no Pif Paf e depois no Pasquim. Foi quando ele desafiava a Ditadura Militar com suas charges e era preso.  Fiquei sabendo que de tantas vezes que ele foi “convocado para interrogatórios”, passou a  despedir-se dos amigos  dizendo que ia para um balneário.  Foi quando lançou seu livro Aberto para balanço que acabou por não ser publicado por motivos óbvios.
 
 

Madame e seu bicho muito louco apareceu depois da liberação dos jornalistas do Pasquim. Tratava-se de “uma senhora autoritária e seu cão de observações lúcidas”.  Outro dia encontrei numa banca que vende revistas velhas, a revista O Bicho, com cartuns e quadrinhos desta Madame e seu cachorro filósofo. 
 
 

Quem não se lembra da zebrinha que aparecia no Fantástico e que anunciava o resultado dos jogos de futebol para a loteria? Pois foi o Fortuna que ilustrou a paródia ao programa.  Fez muitas capas da revista Veja e diversas capas para o suplemento Follhetim, do jornal Folha de S. Paulo do qual    era chargista. Assim como O Correio da Manhã. Desenhava a nanquim, mas também com caneta hidrográfica. Ilustrou as crônicas do Verissimo e do Ubaldo Ribeiro. Fazia desenhos sobre Delfim Neto e Jânio Quadros.
 
 

Nesse período eu só tinha notícias do meu primo através de jornais e revistas. Ele morava em São Paulo e grande parte da família no Rio de Janeiro e Belo Horizonte.   Em 1989 eu estive em seu apartamento naquela cidade. Conheci sua segunda esposa e o filho caçula. Almoçamos juntos. Conversamos muito sobre diversos assuntos e, sobretudo sobre nossa família.  Soube dos seus filhos Luís Felipe, diplomata, escritor e poeta, e Marcelo, guitarrista em Portugal. E tem a Ana Fortuna, que também se dedica  à arte.

 Mergulhamos nas reminiscências dos luminosos dias de infância e adolescência em São Luís do Maranhão. Ele estava na fase dos logotipos. Foi a última vez que nos vimos. Cinco anos mais tarde fiquei sabendo que faleceu de infarto fulminante. E eu li no Jornal Estado de São Paulo:
"Morreu um perfeccionista, um dos “cem melhores cartunistas do mundo”, conforme apontado em 1977 pela Casa do Humor e Sátira de Gabrovo, da Bulgária. Morreu também um homem raro, que tinha “um gênio filho da puta”, segundo Jaguar, mas que nunca abdicou de suas opiniões para assegurar o emprego. Morreu um artista de espinha ereta."

Agora temos o livro Fortuna, o cartunista dos cartunistas, com prefácio do grande poeta maranhense e nosso conterrâneo Ferreira Gullar e que conta sua trajetória como cartunista e chargista brilhante que ele era. E continua a ser na amostra do seu trabalho, porque as charges são geniais e  atuais!

 
 


Com organização do caricaturista e pesquisador Cássio Loredano, a compilação é a primeira ação de resgate da obra de Fortuna, chargista político e crítico ferrenho da ditadura, que era (e é) adorado por seus pares, mas pouco lembrado pelo grande público"

3 comentários:

MJFortuna disse...


Marcelo Fortuna, filho do Fortuna, por e-mail


06:51 (Há 5 horas)


Que beleza, Prima. Adorei!

MJFortuna disse...

25/05/2014

Monica Puccinelli, por e-mail:

A Arte é o elo que nos liga com o sonho, com a imaginação e nos da asas para voar, e se for necessário, voltarmos para nos encontrar, encontrar no nosso interior, bjs

MJFortuna disse...



Eliana Angélica de Sousa


13:51 (Há 41 minutos)

Como você mesma disse, pouco conhecido pela população.
Eu não o conhecia e agora fiquei fâ dele, mesmo não estando mais aqui conosco.
Muito incrível a criatividade e o humor do "primo Reginaldo".
Muito grata.
Bjs.

eliana

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