Maria J Fortuna
Eram muitos
os casulos que se alojavam nas paredes daquela sala. Todos os dias a moça de
branco ia lá ver quais os que tinham se rompido, deixando livre mais uma
borboleta. Então algumas casquinhas vazias voavam até cair, aos pedaços, no
frio chão da sala onde ela atendia seus pacientes. Parece que por causa daquelas lindas pequenas
ninfas coloridas que a Natureza tingiu de amarelo e laranja, e a presença da gata que
gostava de parir na grande gaveta da escrivaninha, aquela sala era realmente
abençoada! Ninguém dizia que se tratava de um cômodo de um posto de
psiquiatria! Sem falar nas plantas que se vestiam com um verde magnífico,
apesar dos poucos raios de sol das manhãs que penetravam, timidamente, pelo
basculante, mas sem tocar em todas elas, nas plantas. Ali estavam ali, decorativas, refrescando os
casulos no calor do verão e mostrando presença solidária no inverno. Mas,
invariavelmente, perfumavam a sala! Ninguém dizia que naquele local eram realizadas entrevistas
onde seriam atendidos os pacientes com diagnósticos dos mais variáveis em
psiquiatria. Muitas vezes, o contato com
aquele ambiente nascedouro de borboletas, folhas verdes e gatinhos, os
acalmava. Alguns chegavam a desembrulhar
ali suas mágoas, buscando remédio para suas feridas em longos monólogos ou
diálogos com a moça de branco. Debulhavam fantasias e viajavam em seus
delírios, ou simplesmente ficavam em silêncio, sentindo os eflúvios do
ambiente.
A gata malhada
de cinza e branco que gostava de dar a luz ao filhotinhos na gaveta, ali ficava
até que chegava a hora da mãe carrega-los na boca, transportando-os para um lugar
desconhecido dos profissionais e pacientes do Posto. Foram três crias em dois anos!
Muitos diziam
que a moça de branco tinha pacto com bruxas e fadas; outros que o pacto era
celestial: seres de luz visitavam a sala mágica, que atraia plantas, borboletas
e gata prenha.
Um dia de
inverno, a moça chegou à sala e havia uma mancha marrom saindo de dentro de um
dos casulos incrustrados no tapume, próximo às plantas. O líquido derramado brotava por uma pequena fenda
na parte inferior do pequeno envoltório cinza. A moça
viu que em sua extremidade, duas pequenas asas ensaiavam
aparecer. Então ficou ali, esperando o
andamento do parto no desabrochar do momento. Mas os minutos se passaram e nada do inseto
emergir do casulo... O que teria acontecido? E entre o atendimento a um cliente ou outro,
ela deitava o olhar na parede branca onde estava o pequeno casulo, como se quisesse aquece-lo com seu olhar
preocupado. Talvez pudesse ajudar no parto usando os dedos para libertar o serzinho que
parecia ter arrefecido em suas forças na luta pela vida. Mas tinha muito medo... Podia abrir o casulo
sem que o inseto tivesse preparado para nascer. Fugia, outrossim, de vê-lo lá dentro, com suas
pernas longas encolhidas e as asas inertes,
murchas e molhadas no interior do recipiente que não cedeu ao rompimento
da vida! Lembrava-se de como os outros
casulos de onde saíram borboletas amarelas. Elas se contorciam no interior dos mesmos, talvez
dolorosamente, para romper a casaca, mas
de lá partiam, com as asas úmidas após o período de pupa e que, depois daquele
instante, milagrosamente voavam em direção as flores dos canteiros plantados
pelos pacientes, que ficava no jardim, em frente á
sala de laborterapia. A partir dali, era com o sol e o vento secar-lhes as asas. Mas aquela imóvel,
de envoltório semiaberto, era diferente. O que havia acontecido?
Num instante
de reflexão sobre nascer e morrer, a moça sentiu que ali estava a representação
viva do ganhar e do perder. Do que é
inevitável e do que pode ser superado. E imaginou quantas conquistas e derrotas
lhe traziam o atendimento a seus pacientes chamados de “loucos”. Os anos que
teria que passar diante da pouca possibilidade de recuperação, mesmo parcial,
de uma maioria considerável deles. E de outros que não teriam nenhuma chance de
consegui-lo. O casulo duro, espesso,
maldoso, simbolizava naquele momento, além da doença, o ambiente social
daqueles cuja superação parecia impossível! O casulo humano é fincado na parede do útero, dentro de um corpo, próximo ao coração, e ali se alimenta porque nasce com fome de
leite e de amor. Um deles só não basta. Teria que ser a comunhão dos dois,
pensou. Quantos haviam nascido do amor?
Ali estava um
ser que havia fabricado algo em volta de si mesmo e que acabou se tornando seu próprio féretro.
Teria que celebrar quando um daqueles homens e mulheres voasse, com suas consciências, em direção ao sol! Para isso a metamorfose seria lenta e ela haveria
de ter paciência... Não podia dar voz às suas frustrações. Mas longos anos de profissão aguardavam a moça de branco para vivenciar o
processo do seu próprio crescimento. Mesmo assim era muito bom estar
ali. Porque da dificuldade vem à esperança! Aquela borboleta não havia nascido, mas as demais voavam soltas, felizes! Disseram sim à vida!
No final do
expediente, a moça sentiu o silêncio no Posto de Psiquiatria. Ali estava ela diante do casulo que ainda mostrava as pontas das pequenas asas que não voariam. Retirou o mesmo da parede e respeitosamente arremessou-o pelo basculante em direção ao canteiro de flores rosas que circundava o prédio. Apagou a luz da sala e saiu.
3 comentários:
Este testemunho tocou meu coração para sempre... Esta pessoa linda será sempre um exemplo de bondade, dedicação e amor para com todos que cruzam seu caminho.
Vejam o que me escreveu:
AMIGA,
Fiquei maravilhada com esta sua ultima cronica do Blog Arte e Artes Chegou na hora , para mim.
Lembro-me de vc, de guarda-pó branco naquela sala mágica. do posto de Psiquiatria. Lembro-me de mim, atendendo anos antes no mesmo lugar, vinte e poucos anos, quase criança e cheias de sonhos. Foi ali que ajudei a várias famílias a aceitarem este macabro distúrbio, para aprender a tratar de seus pais e mães com Alzheimer.
Eu falava para os outros, mas não conseguia ver meu PAI, meu HEROI, trocando as palavras, repetindo as mesmas piadas dezenas de vezes e se esquecendo de seu glorioso passado.... Talvez eu tenha sido naquela época aquela borboleta não nascida. Ali morreu a melhor parte de minha herança.
Agora meus filhos se vem diante da mesma situação. Alguns negam, outros desconhecem minhas fragilidades, outros simplesmente ficam estupefatos diante da mãe heroína, inteligente,sagaz e sábia, se debatendo na penumbra que lhe cobre as teias de seu cérebro gasto....
È preciso aprender a viver AGORA com esta minha nova realidade e continuar a amar-me incondicionalmente como amei e ainda amo meu PAI, sempre heroi apesar de tudo. Hoje preciso colher esta herança paterna com a mesma alegria que carrego meu nobre caráter e minha invencível e romântica capacidade de crer, oferendas que ele plantou em minha alma ainda semente. " COM DEUS NADA TEMO!COM DEUS HEI DE VENCER!"
Por isso , amiga, agradeço por ter alguém como vc dentro de minha seara e de ter meu pai herói esperando-me Deus sabe onde e quando. ACEITAREI E AGUARDAREI, AMANDO INCONDICIONALMENTE A TODOS OS SERES CRIADOS. Deus seja louvado!
sUBASMATU sARVA yAGATHAN!
Eis o que minha leitora fiél cujo pseudônimo é Paradiso, escreveu sobre os meus últimos textos:
"Vamos por partes, já que você esteve tão inspirada e prolífera nestes últimos tempos.
Bom que seja assim: vale-se de suas memórias, de sua sensibilidade, de sua imaginação criadora para criar para seus leitores um mundo mais suportável, mais bonito. O lado social da literatura.
Por sua vez, ao escrever, você também contempla seu lado pessoal. De maneira saudável ocupa o tempo, e de quebra, deixa escapar um pouco de suas angústias...
A trilogia da DENTADURA DO JOAQUIM é ótima. Imagino que inspirada em seu trabalho no Júlia e no Imaculada Conceição daqui de BH.
A história é uma delícia e, eu que também fui ( ou ainda sou? Assistente Social) me transportei para a realidade descrita.
“Vi” se posso dizer assim, até mesmo o seu Joaquim conversando com a DOMARIA. È assim para nós – que nos ocupamos dessa nosso público tão sofrido...
O desfecho é muito engraçado e surpreendente. Sabe de uma coisa, amiga: tenho comigo que “fazer” rir é uma arte muito mais difícil que “fazer chorar”.
A Borboletinha que não sobreviveu, apesar da aflição e da torcida da “moça de avental branco” – você mesma ou seu alter-ego- , nos fala da tragédia que é o nascer e o morrer. E lembra nossa impotência frente a quase tudo na vida, especialmente em situações limite. Intervir, ou não? Shakespeare voltando com sua dúvida... o ser ou não ser... Também nos lembra que o crescimento pessoal e´obra de cada um . Pessoal e intransferível! Trágico, mas simples assim! "
Obrigada por tudo. E continue dando asas à sua imaginação, usando seu tempo de maneira produtiva , desenhando, escrevendo e encantando a todos nós, seus admiradores, com quem, generosamente, partilha suas histórias.
Lucelita Mariapublicou emMaria J Fortuna
10 de julho próximo a Palmas
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Olá Maria J Fortuna! Li sua crônica "Ninguém avisou", no Blog...Gostei muito! Abço!
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