Maria J
Fortuna
Vó Luna era uma mulher muito benquista por
quase toda comunidade daquela pequena cidade do interior de Minas. Isso por
causa de sua religiosidade e da grande compaixão que tinha para com os pobres.
Por isso mesmo, ela trazia dentro do peito a certeza de que sempre fora uma boa
cristã e, portanto, fazia jus à fama de santa senhora. Até que um dia, às vésperas
do seu aniversário de 85 anos, acordou com aquela sensação estranha que a
visitava quase sempre, de que tudo que havia feito na vida até aquele momento,
não tinha nenhuma validade junto ao Criador. Sensação de estranha
dissintonia... Por causa disso, achava que nada seria reconhecido por
Ele. Tomara que tivesse equivocada e, que pelo amor do Seu coração,
tudo seria relevado! Toda aquela estranheza de si mesma... Como então
justificaria sua existência de anos e anos de barganha com o Altíssimo? E
agora que estava velha, ainda menos sentido encontrava nos dias que se acabavam
cada vez mais rápidos como um cometa rumando ao desconhecido, e sua
consciência lhe pedia lucidez.
Tentou distrair a mente com
outras coisas. Até com a saudade que sentia do seu marido que há mais de trinta
anos havia partido, deixando com ela o mistério da morte. Lembrou-se
do problema com o filho casado, que enveredou para o alcoolismo,
prejudicando a família, ou mesmo as lembranças inquietantes da
filha que se foi para Europa, e tudo mais.
Levantou-se da cama, sentindo a
velha dor nos ossos e um pouco de acidez no estômago. Necessitava fazer o
café da manhã. Mas algo bem maior do que ela a cutucava e pedia para emergir.
Haja vista que havia sonhado que estava boiando num rio de águas
gelatinosas. Mas algo exigia confrontação com ela mesma. Não com aquela que,
muitas vezes por medo, benzia-se frente a alguma situação difícil,
mas com algo genuíno e puro que ocupava todo o seu ser naquela manhã. Na
realidade ela se sentia como se fosse uma cebola que, à medida
que os anos passavam, necessitava fossem-lhe retiradas as diversas camadas
até que se chegasse até a menor delas, frágil e quase transparente:
o núcleo da mandala. Era assim. Mesmo que o cheiro não fosse
agradável e seus olhos se enchessem de lágrimas. Afinal, cebola é algo
muito estranho... pensou. Passou anos na dúvida, sem saber se a mesma
seria tubérculo, fruta ou flor. Parecida com a indefinição de si mesma que se
passava dentro dela.
Mesmo assim, não se deteve muito
naquelas coisas que a atormentavam, em pleno jejum. Então foi à cozinha,
pegou a pequena chaleira, ferveu o líquido bendito que saiu da torneira,
e colocou o pó de café. Sentiu o familiar e delicioso perfume do
acolhedor líquido negro, que fazia parte de sua rotina desde a infância.
Depois caminhou vagarosamente e sentou-se na cadeira que havia embalado
os filhos e foi sorvendo, gota a gota, seu cafezinho com pão de queijo
guardado de véspera, dentro de um pote de vidro.
Nunca havia ouvido com
tanta clareza o pássaro cantor que a saudava todos os dias quando acordava. Mas
naquele instante fazia eco mais forte em seu coração. O ar estava mais leve. E
pensou que mesmo quase que perdendo o sentido da vida, não
recorreria à velha barganha para com Deus. Não prometeria ser pessoa melhor,
sem cair em pensamentos maldosos, controlando seus impulsos, para pedir algo em
troca. Tudo aquilo seria mentira. Ela e o próprio Deus andavam
cansados de barganhas. Tipo fazer jejum para que Ele ajudasse o filho a
libertar-se do álcool. Aquilo era tipo de “dá cá que eu te dou lá” cósmico, que
não acabaria mais!
Ali debruçada olhou janela afora.
Deu um suspiro e voltou a sentar-se em sua cadeira de couro velho,enfeitada com
babados de crochê. Fixou o olhar nas distantes montanhas cor de ferrugem,
semicobertas de verde, e fitou o céu. De como estava azul naquele
momento! Então deu grande mergulho para dentro de si mesma e voltou a sondar
essa história de barganha com Deus. Valera a pena? Por que ela e milhões de
pessoas passam a vida nessa transação com o Criador? Por que, apesar disso, Ele
não havia libertado do mal pessoas como seu filho, apesar de todos os
rogos maternos durante tantos anos? Tudo que ela havia acreditado para si mesma
a respeito de Deus, nesse aspecto, seria falso? Sentiu sensação da inutilidade.
Mas definitivamente não poderia julgar qualquer movimento d´Ele, baseada em
sentimentos humanos. Será que como as ondas do rádio ela não estava
realmente sintonizada com Ele? O que faria para que o elo se refizesse?
O gato amarelo deu um pulo ao
sentar-se em seu colo, ronronando. Ela passava a mão no pêlo macio do animal e
continuava entregue a seus questionamentos e reflexões. Deve
ser porque sentiram o Divino silêncio que muitas pessoas sentem
quando abandonam suas religiões, pensou. Ou não souberam interpretá-lo, como
acontecia com ela. Outras perguntas brotavam em sua mente, aos borbotões,
até que começou a ficar cansada. Só se ouvia o ronronar do gato e o canto do
pássaro. Tudo mais estava em silêncio...
Teve, de repente, certeza
de que algumas pessoas chegavam à santidade quando abandonavam a barganha. E os
ateus, que não tinham Deus para barganhar? Naquele momento sentiu que
havia tirado a última camada da cebola. E se via menina, procurando alguma
coisa escondida e o grupo de amiguinhos gritando: - Está frio, morno, quente,
quenteeeee! À medida que se aproximava do objeto procurado. Então, falou
baixinho: Deus, se Você quiser me favorecer tenho certeza de que o fará
de Graça. Se quiser... E ainda está em tempo...
3 comentários:
Beatriz Campos no Face
Adorei Maria!!!! Barganhar para quê? Sempre será feita a vontade Dele! O resto é ilusão! Beijos e ótimo domingo....
Descurtir · Responder · 1 · 16 h
Eliana Angélica de Sousa
11:06 (Há 5 minutos)
Que chic esta crônica. Uma história que não queremos para de ler quando iniciamos e sempre querendo saber do final.
Que final para gostosa, meu sorriso estampou em minha face diante da proposta da Vó Luna.
Muito linda! Parabéns!
Grata.
Bjs.
eliana
Minha assídua leitora que não quer assinar seus textos:
Belíssima a sua BARGANHA!
Senti que Vó Luna experimenta muitas das angústias que experimento. E, aposto, muita gente também!
O desconforto interior, o sentimento de impotência frente a tanta coisa na vida e seu MISTÉRIO, que nos leva a Barganhar com Deus.
As perguntas que nunca encontram resposta. Afinal, tudo é um imenso mistério....
O “ conforto” que trazem os sacrifícios em prol de nossas causas...
O que é a BARGANHA da qual você fala, e muito bem? Talvez uma forma mágica e mais leve para lidar com as dores da vida.
Para amenizá-las, para se ter ESPERANÇA, nós que somos tão frágeis e desvalidos.
Se Deus não é por nós quem o será?
A metáfora da cebola é genial.
Um dia li que o tempo / a vida é como um esmeril que vai desgastando tudo até chegar ao final.....
Na última casca da cebola, o insight de Vó Luna.
O “ Divino Silêncio” de seu texto também se abateu sobre mim. Vou caminhar pensando neste silêncio......
Obrigada pela crônica maravilhosa, filosofia pura, que me chegou através de você.
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