domingo, 1 de junho de 2008

A filha da mãe

Maria J Fortuna
Outro dia fui visitar Antoniella, velha companheira dos anos 60, mulher brava e corajosa sobrevivente daqueles anos de chumbo, que a mim me traz uma certa paranóia até hoje.
Antoniella, estava mudada. Logicamente os cabelos quase totalmente brancos, mas seus traços finos, ainda sem muitas rugas , não escondiam um rosto marcado por amargos tempos. Os olhos, como sempre, muito tristes. Antoniella sempre dissimulou seu olhar. Não se mostrava pra ninguém, vestida de tristeza. Mas não tinha jeito. A gente sentia... o que transparência através do seu sorriso terno ou indignado . Era, como dizia o meu Mestre Eli Bonini: metade bravurina, metade ternurina. E assim se movia naquele tempo aquela preciosa figura humana.
Durante todo o tempo da minha visita, ela se mexia pra cá e pra lá, ora às voltas com a panela de cozinhar frango, ora com as verduras que adormeciam embaixo da pia. Escolhia, uma ou outra, com os dedos nervosos e começava a descascá-las freneticamente porque, segundo ela, estava atrasada para o almoço. Eu fiquei pensando... Aquela não podia ser minha amiga de outros tempos... Atrasada para o almoço de quem? Se vivia sozinha com sua filha adolescente e mais ninguém? Ah! Só podia ser para dar almoço à menina. Eu lhe falei que já havia almoçado. Eu tentava introduzir um assunto qualquer, tomando cuidado para não falar em torturas, ditadura, principalmente depois do AI5, porta aberta para a maldade que lhe deixou manca de uma perna durante um interrogatório no Dops de Belo Horizonte. Recebeu muita cacetada naquela perna para dedurar companheiros e o companheiro. E não dedurou. Ficou aleijada.
Antoniella era um exemplo para todos nós. Vergava mas não quebrava. Era dislexa, trocava algumas palavras e não aprendia tabuada de jeito algum. Apesar de socióloga. Sempre pedia a alguém para fazer suas contas. E morria de vergonha por causa disto. Depois eu fiquei sabendo que nunca vira a mãe e que seu pai bebia. E um de seus irmãos sumiu para sempre no poço fundo e perverso da "Gloriosa Revolução" de 1964. Eu olhava... olhava... para ela e não conseguia mais ver aquela garota de calça jeans cheia de panfletos embaixo do braço, subindo nas cadeiras do Diretório Acadêmico de sua Faculdade, provocando, com seus discursos inflamados o grito de Abaixo a Ditadura! Agora ela estava ali, se agitando na cozinha do pequeno apartamento alugado. Nunca conseguira ter seu próprio teto. Um sonho de consumo capitalista, talvez... para ela. Onde estava Antoniella, eu me perguntava a mim mesma, o tempo todo. A moça que engravidou de um companheiro que também havia sumido como seu irmão. Ambos estudiosos em antropologia e que abominavam a cultura da miséria. Chegavam a dar aulas sobre O Capital de Max. E sonhavam com a educação de base para o povo brasileiro como Darcy Ribeiro… Sempre a utopia de ver acabar com a fome do povo. Varrer a corrupção do País, era então o seu sonho maior para não ver a “pobreza envergonhada”, como chamava Dom Helder Câmara, que cativava os revolucionários, pelo amor aos totalmente necessitados. Bem, nem é preciso dizer o quanto Antoniella comungava com todas aquelas idéias. Ela, que descendia de uma família abastada do sul de Minas. Pai fazendeiro famoso, algo lendário até. Pra lá de latifundiário. A última vez que eu a vi no passado, antes deste encontro que lhes relato, ela passou por mim numa rua movimentada de Belo Horizonte, com a filhinha nos braços. Era inverno, naquela época Fazia frio em BH, e elas estavam abrigadas por seus pesados casacos. A menina com a cabecinha deitada em seu ombro. A pessoa que estava comigo a conhecia, comentou:
-Antoniella vive agora para esta filha.
Afastou-se da família e tenta dar à menina tudo que pode de si para esquecer os horrores por que passou. Parece evitar que a filha sofra o mínimo de frustração! - Que perigo! pensei. E foi só.
Bem, voltando ao ponto em que eu estava visitando a minha sofrida companheira, dali a pouco aparece, em nossa frente, ao meio dia, uma linda jovem em camisola curtinha , rosto sonolento, espreguiçando-se toda, ignorando minha presença e as dificuldades da mãe, que necessitava desesperadamente de ajuda na cozinha. Pela sua idade e por causa da perna macerada, há anos atrás, e que doía de lhe levar às lágrimas! Perguntou à mãe atarefada ignorando minha presença:
- Tem café? indagou displicente
- Filha, esta é uma amiga de sua mãe, apressou-se Antoniella a explicar, muito sem graça... No que a linda moça, suspirando, falou sem esboçar nenhum sorriso:
- Oi!
Nem vou esperar que você descubra que a filha de Antoniella, Maria, se apresenta como moça caprichosa, metida a burguesinha, dependente da mãe, a quem dirige os mais perversos impropérios! E que não tem nenhuma admiração pelo Che Guevara. Muito menos pelo Fidel. Pouco está se lixando para a situação do seu País. Só quando o "povão" a incomoda muito, os que merecem pena de morte, na certa. Que só gosta de conviver com "gente bonita" e tem vergonha de levar seus amigos e namorados em sua casa. É fã do Mac'Donalds e não deixa de assistir os programas da Rede Globo, de quem é telespectadora e fã assídua. E onde pensa em pleitear um lugarzinho quando for modelo e atriz. Coisa de doido! E vem o pior: tem vergonha da mãe, no que insiste para que esteja sempre bem arrumada para que não passe vergonha frente à "galera". Isto se deu na década de 80. Esta malfadada visita. Não mais tive noticias das duas. Para que? Afinal a indignação havia tomado conta de mim naquele momento. E em todos os momentos em que me recordar da Antoniella do presente, ou do passado mais próximo. Na realidade será que ela ainda está viva ou morreu de desgosto? E a filha? Teria “caído em si?” Saberia alguma vez em sua vida reconhecer que foi parida e criada por uma heroína? Alguém teve a coragem de falar quem é ou era sua mãe na realidade, o que fez para poupar a vida dos companheiros e do companheiro, pai dela? Por que Antoniella fracassou tanto na educação daquela criatura atolada em consumo, no Capitalismo cruel?A culpada teria sido mesmo a própria? É até irônica a pergunta... Por isto dá estranhas cambalhotas no ar. Espuma feito refrigerante. Para o caso cabe a Coca Cola. Eu me nego a acreditar que aquele sacrifício todo do passado terminou em Coca Cola. Por isto não tive coragem nem pra voltar lá e nem pra ter mais ou más notícias... Prefiro acreditar na outra... naquela do “nome de guerra” que escondia Antoniella.A que macerou a perna para não delatar ninguém, principalmente o pai daquela menina – a nossa saudosa Lavínia!

Um comentário:

Luiz Lyrio disse...

O que fizemos para poupar nossos filhos das tensões e medos pelos quais passamos só deu um resultado: inconscientemente, os tornamos adeptos do sistema, totalmente submissos e seguidores da "onda" do momento. Isto sem falar que muitos de nós tiveram suas razões para esquecer o passado e desejar um outro futuo para seus filhos. E conseguiram...
Luiz Lyrio - BH

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