Maria J Fortuna
Ela era de uma coragem a toda prova, mas tinha o coração de casca de ovo. Não era à toa que abria mão das coisas que poderiam fazer-lhe feliz... Talvez por isto, de vez em quando, tinha acessos de loucura. Havia dia que queria medir o vento. Noutro, queria ficar nua para beber água da chuva. Mas tinha consciência do seu estado emocional descompassado... Lambia seus sonhos como último refúgio para ficar um pouco contente. Tocava o sexo para aliviar tensões e esquecer o medo. Ah! As fantasias que corriam soltas como redemoinho em sua mente cansada... Depois... Bem, depois não sabia o que fazer de si mesma. Não podia esquecer que seu traço louco era sua marca de Caim. Deus puniu Caim, mas o protegeu. E ele foi pai de muitas gerações com nome na Bíblia e tudo. Deus podia protegê-la, mas não do seu traço doente, dos pensamentos obsessivos que lhe assaltavam a mente com tal intensidade que chegavam a paralisar seu curso de vida, já tão sacrificado. O jeito que tinha era acolher e conviver com a loucura, porque não tinha outra saída. Assim foi vivendo, esperando que a lua se apagasse com a chegada do sol. Com uivos de lobo aos seus ouvidos. Chegou a ponto de sentir apagada a Luz de Deus. E todo o seu universo ficou às escuras dias e dias... Quando indagava por que tanto suplício, a resposta era sempre a mesma: não tinha resposta.
Os anos se passando e a dor continuando. As amigas se casando, os filhos dos outros crescendo, e ela ali a ver navios... Louca para trançar seu corpo num corpo de homem em que, nus, podiam se abraçar e espantar seus pesadelos em noites sombrias... Mas não iria adiantar. Homem nenhum aguentaria presença tão distante quando a obsessão a carregasse do mundo em sua presença de sombra. Levantava à noite e escrevia: “- Por que é assim comigo? Que mal fiz , pelo amor do santíssimo nome de Cristo?” Até que um dia seu pensamento a seduziu com uma sugestão: “ Ignore seus delírios e diga para si mesma que você não se identifica com eles". De certa forma foi um alivio. "Não sou esta face doente que me atormenta, sou bem maior do que ela! “, repetia mentalmente. Mas o traço doente veio dos antepassados e tinha muito poder sobre ela! Trazia nos genes aquela loucura coletiva, herança maldita de algum antepassado... Avós, bisavós, tataravós... Quem? Alguém que tinha aquela marca de Caim. O que poderia nascer disso tudo? Seria escrava dos comprimidos que amenizavam apenas o medo que causava a maldição?
Aconteceu numa noite de insônia. Mergulhou as mãos numa argila que estava abandonada num fosso perto de casa. Pegou um bocado e começou a amassá-la. Primeiro com ternura, sentido-a fria e úmida. Depois, começou a apertá-la com força. Quanto mais a apertava, mais a massa lhe escapava pelos dedos. E mais os maus pensamentos lhe fugiam ao controle, como azougue, misturando-se ao barro. Aquela massa informe, fria e com odor de terra, era gostosa de apertar. Podia ocultar ,inclusive, todos os segredos do seu coração, deixando que sua ternura represada se misturasse a ela. Depois, veio o surgimento de uma forma. Alguma coisa nascia dali. No início, temeu que pudesse brotar da argila algo disforme, que pudesse aumentar o medo de si própria. Mas sentiu que teria, finalmente, um controle sobre o que não queria moldar. Surgiu de suas mãos lamacentas a forma de um feto. Misturou novamente a massa, retirando-lhe os pedaços em ritmo de rejunte. Apertava, beliscava, batia nela com ardor. Depois, moderando a ansiedade, viu outra forma nascer e, daí por diante, em muitas outras noites de insônia, buscava beleza na harmonia e pureza das formas que brotavam de suas mãos. Busca interminável! Todas as peças que, produzidas, eram ensaios, nunca estavam completas. Ela não estava completa. Nada é completo.
Ali estava a explicação para sua mente perturbada: seu tormento havia-lhe conduzido ao encontro com os loucos que haviam habitado o planeta e existem , numerosos e anônimos, por ele. Não estava mais sozinha. Era uma artista!
Um comentário:
Querida Maria Fortuna,
que importante "A marca de Caim".
Acabei de ler Gioconda belli, "El infinito en la palma de la mano", que trata da primeira família, a de adão e Eva.
Cada um deles, os pais e os dois casais de gêmeos tão inocentes e ternos, descobrindo como sobreviver num mundo inóspito.
Caim não queria matar Abel, apenas seitiu tanta raiva, bateu nele com uma pedra, e, é claro, matou.
Eva acalheu o filho culposo e vivo, porque sabia que o que ele sentia seriaseu maior castigo.
Adão rechaçou "o assassino", e Abel era seu filho predileto.
Chamavam Deus de Elokim.
A Serpente era num certo sentido, a companheira de Elokim, e seguiu o casal expulso do paraíso.
Temos a marca de Caim, que foi nosso segundo pai, já que Abel não teve filhos.
E somos artistas porque, além de sobreviver, precisamos criar nossas vidas.
Saudades de você,
Eliane
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