Maria J Fortuna
Para mim, o padre era uma figura enorme, desproporcional, ameaçadora, com sua batina escura, comprida e cheia de botõezinhos como pingos negros. Nas missas de domingo, minha irmã, mais velha apenas três anos, segurava-me pelo bracinho suado e frio de medo, e me levava para a janela da Igreja, a fim de distrair-me a atenção, deixando-me mais calma. Do contrário, eu escalaria, como sempre, o terno de casimira inglesa do meu pai, para refugiar-me em seu colo, até sair da Igreja. Tagarelando com minha irmã, esquecia, por alguns instantes a figura apavorante do padre e meus pais podiam rezar em paz.
Já os frades vestidos de marrom, com cordas brancas na cintura, passavam-me uma sensação familiar de aconchego. Talvez por eu haver nascido entre freiras franciscanas. Eu adorava visitar as irmãs que trabalhavam no Hospital em que me viram nascer, e pendurar-me em seus cordões franciscanos.
Minha vivência interior era muito rica em fantasias que me traziam espanto e medo. Enquanto as crianças de minha idade se ocupavam em fazer travessuras, eu ficava pensando no significado das coisas do mundo, e do por que eram dessa ou daquela forma. E tinha uma empatia absurda com o sofrimento, quer das pessoas, quanto dos animais e até em relação às coisas materiais, atribuindo-lhes sentimentos. Com isto, uma cadeira podia estar sofrendo muito com o peso de uma pessoa gorda. Por isto, dormia com uma bacia de alumínio embaixo da rede, para aparar a urina que me descia livre e solta todas as noites, pelo corpinho tensionado por emoções maiores do que podia suportar. Tudo fruto do meu envolvimento com os conflitos que aconteciam à minha volta e que eu sugava como esponja! Com isso, muitas vezes passava dias comendo apenas arroz com manteiga, às refeições, e frutas durante o dia.
Particularmente, na Semana Santa, o sofrimento era aterrador! A visão da imagem de Cristo, com aquela enorme cruz nas costas e com coroa de espinhos, invadia meu coraçãozinho medroso e tomava conta de mim em forma de angústia. Todos os anos eu era levada a assistir à Procissão do Encontro, típica de São Luís do Maranhão, durante a Semana Santa, onde de um lado vinha a imagem de Jesus ensanguentado e do outro, a de Maria, sua Mãe, com sete espadas cravadas no coração. O desfile de padres aumentava meu pânico e eu não compreendia bem o papel deles naquele espetáculo sangrento. Tudo que estava ali, naturalmente, era processado na minha cabecinha, como sendo real.
Num desses espetáculos aterradores, estava eu no colo de minha tia Marieta, chamada pelos sobrinhos de Coroca, acompanhando o canto da Verônica, que subia num banquinho para enxugar o rosto da imagem de Jesus com sua veste roxa e rasgada. Havia um silêncio sepulcral em nossa volta... O clima era de profundo respeito e reverência ao sofrimento do Cristo. Apenas a voz da Verônica, moça escolhida entre tantas moças por cantar bem, rasgava o tempo e o espaço e, como uma flecha, transpassava os corações naquele momento, deixando todos ainda mais consternados.
Em meio da lúgubre cerimônia, apareceu um frade na janela do Convento, ao lado da Igreja Nossa Senhora do Carmo. O velho religioso era careca e tinha uma longa barba branca. Do colo da tia, meus olhinhos de jabuticaba deram com aquela estranha figura, que se debruçava na janela e falava qualquer coisa para alguém lá embaixo. A careca brilhava e a enorme barba balançava ao sopro do vento. Fiquei pasma! A surpresa, por instante, arrancou-me do sofrimento alastrado à minha volta. Não me contive e, no meio da procissão, falei em voz alta, apontando para a janela do Convento onde estava o franciscano:
- Coroca, o frade tirou o cabelo todinho da cabeça e botou no queixo!
Não só eu, mas todos os que estavam ali, riram bastante da minha inocente exclamação e, por um breve momento, aliviaram também suas tensões. Episódio inesquecível para a família!
Um comentário:
Entrei com você nas igrejas e sofri seus sofrimentos. E ri da apurada observação da menina que iria se tronar poeta, artista. Pagamos um preço por tanta sensibilidade, não é?
Bejos e :)
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