Sobrados de São Luis como a casa do meu avô
Maria J Fortuna
Na memória, moram os diversos lugares por onde vivemos. Gosto de caminhar pelos espaços vazios das casas onde eu, minha família ou amigos íntimos habitavam. Ou seja, moradas em que vivi e imagino que estejam agora fisicamente vazias. No meu “passeio” pelas ruas e becos do passado, ignoro as pessoas que depois entraram e se estabeleceram por lá. A começar pela da casa do meu avô, com uma escadaria da qual pulei um dia e a lâmina de ferro do portão afundou no meu dedo, partindo-me o anel, quando eu tinha quatro anos de idade, em São Luís do Maranhão. Um sobrado de tábuas pretas e brancas onde me equilibrei para dar os primeiros passos. Percorro a grande sala, a mesa que uma vez ocultou, sob seu pedestal de madeira, uma aranha caranguejeira. A sala de refeições, o quarto das tias solteiras, onde havia crucifixos pendurados em cada uma das suas quatro camas. Aqueles mesmos de onde arranquei o Cristo crucificado e o coloquei na cama de bonecas. Os armários de roupa que eram cobertos por lençóis quando relampejava. O grande salão de festas com um piano, o quarto de hóspede sempre trancado e o quarto de despejo onde, após a morte do meu avô, eu, calçando sua botina, vi de lá sair uma barata cascuda. A cozinha com forno a carvão e grandes tachos de cobre. Vejo as gamelas de madeira, onde eram feitos doces, principalmente os de goiaba, fruto que caía aos borbotões da goiabeira no grande quintal. Assim como as carambolas. Percorro o jardim carregado de angélicas que perfumavam a casa, principalmente após as 18 horas, quando do rádio a gente ouvia o Ângelus e rezava a Ave-Maria. Até hoje sinto grande nostalgia nessa hora! Lá embaixo, na lavanderia cheia de pedras brancas, jabotis de todos os tamanhos passeavam no lodo e mergulhavam no tanque raso. Uma gata parideira escondia os filhotes no sótão da casa. Sim, sempre vou até lá em pensamento, apesar de não restar mais ninguém dos meus por ali.
Estou certa de que cada um desses espaços em nossa memória oculta períodos da vida, onde a ternura refrigera prazerosamente nossa alma. Essas lembranças ecoam no coração como doce sinfonia. O segundo espaço vazio que costumo frequentar era o da minha amiga francesa Solange de Marbaix, em São Paulo. Todas as vezes que eu ía visitá-la, ao abrir a porta do elevador, sentia o perfume exalado das rosas sobre o aparador junto a porta, dando-me boas vindas. Aquele odor delicioso era reforçado pelos jasmins de sua varanda. Ninguém acreditava que ali, no 14º andar do prédio, havia um jardim suspenso! Em suas viagens pelo sul do Brasil, minha amiga colhia aqui e ali, pequenas sementes e mudas, que levava e plantava em seus canteiros. Tinha rosas, cravos, buganvílias, margaridas, etc
Então, em minha viagem pelos espaços vazios, percorro novamente o apartamento de Solange no bairro Campos Elíseos. Por mais que esteja agora habitado, para mim, sem minha amiga, estará sempre vazio. Chegando ao jardim suspenso que ela tanto amava, vejo o grande lagarto de ferro, segurando a porta que refletia em seu vidro a beleza do jardim. Contemplo na sala o velho órgão, vejo o teclado mudo, os livros, as fitas de vídeo ainda em VHS, o tapete persa estendido no chão onde o gato Xuxu, Sagrado da Birmânia, adorava se estender preguiçosamente. Observo os objetos de prata, os cristais que ela dizia pertencer aos bons tempos das vacas gordas, a grande mesa de vidro onde ela trabalhava horas a fio, a salinha-biblioteca onde, na máquina de escrever e depois no computador, ela escreveu o livro sobre Maomé, esse desconhecido, e os Cadernos Sufis. No quarto vazio, a pequena cama cercada por inúmeros armários e uma grande penteadeira. As cortinas em desalinho. Pelo tamanho do quarto, a cama ficava tão pequena que ela dizia ser o quarto de Catarina de Médici. Não me recordo o que queria dizer com isso. Não gosto de contemplar este pedaço da casa, onde ela sofreu dores atrozes de um câncer que a levou de forma fulminante! Ao lado, o quarto de hóspede, com sua imensa janela para a paisagem cinza da cidade. Caminhando por lá chego a ver, em cima da cama, toalhas, sabonete e um ramo de miosótis ou de outra plantinha delicada esperando-me para um banho repousante. E um presentinho na mesa de cabeceira, ao lado de um copo com botões de hibiscus, que no dia seguinte se abriam e enchiam o quarto de luz!
Ali eu descansava da viagem, usando sua ducha francesa. E, já pronta, aparecia na sala, onde me aguardava a mesa com toalha de linho branco, um bom vinho e alguns quitutes, dentre eles, deliciosos chocolates. Sem falar da torta de nozes alemã, que ela sabia que eu apreciava! Parei diante do grande sofá de veludo azul-marinho, onde começávamos um papo gostoso em preparação para o grande sarau que viria! O sarau consistia em mostra de poesias, a maioria persas, projetos para suas palestras sobre Sufismo, algum filme interessante sobre grandes balés ou óperas, conversa sobre assuntos esotéricos e depois de tudo, sonolentas, nos retirávamos para nossos quartos. Como não voltar de vez em quando àquele endereço?
Solange de Marbaix e seu gato Xuxú no jardim suspenso
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Acredito que, quando passamos para outra dimensão da vida, volta e meia visitamos os lugares onde fomos felizes. Se eu fosse ocupar os espaços vazios dos mais de 30 lugares em que morei em São Luís, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, caminhando através da memória, teria a mente ocupada por muito tempo. Mas muitos me trouxeram sofrimento... Esses dois não. Fui muito feliz. São espaços vazios cheios de lembranças que, em especial, gosto de retornar cada vez que a saudade me sufoca. E ainda bem que, nas tensões do dia a dia, tenho para onde voltar...
Solange de Marbaix e seu gato Xuxú no jardim suspenso
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5 comentários:
Mariinha, esta bela crônica de hoje, bate em cheio com que eu sinto e penso: nem o vazio, que chamamos de vazio, está vazio. Ele é pleno (de energia, pensamentos, sentimentos, vibrações). Ou seja, o que aparentemente parece Vazio, não é vazio.Parabéns por seu belo texto. Abraços, Norália
sfyienc
Mariinha querida,
adorei Espaços Vazios. Incrível o anel ter se partido, e seu dedo não! Parece aquela música do "anel que tu me destes"... E o ditado popular, "vão-se os anéis, fiquem os dedos..." beijos!
Norália e Eliane, que bom ver vocês de volta nos comentários... Estava sentindo muita falta de vocês porque afinal de contas são as duas amigas que enriquecem meu blog... Sem vocês fico sem comentário nenhum. Falta a Mônica também aparecer por aqui. Aí o quadro estará completo!
Obrigada e beijos
Ei amiga, adorei mais essa crônica. Sou, por dentro, cheia de espaços vazios porque distantes, de memórias longínquas.....e adoro acender uma lanterna e voltar a cada um desses espaços para reviver velhas emoções, arder de saudades, mas nunca esquecer. Beijos.....
Mônica Puccinelli, por email:
Ler seus escritos e viajar de braço dado com vc, sentir seu coração batendo forte conforme a descrição do momento, vc é maravilhosa no levar o leitor a sentir suas emoções, vive-las, viajar com vc no tempo, nos espaços, e na sutil variedade de sensações intimas, só suas, que generosamente vc as doa a todos nós, obrigada, bjs, mony
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