Maria J Fortuna
Ontem voltei a assistir ao filme Carandiru de Hector Babenco e lembrei-me de um texto que escrevi há uns cinco anos atrás:
De vez em quando, fico pensado como seria o mundo se tudo fosse sonorizado como espetáculo de ópera. A força dos momentos dramáticos de um espetáculo desses, acompanhado de orquestra sinfônica, sempre me deixavam impressionada quando eu ainda era uma criança. Mesmo sem compreender patavina do que estava se passando naquele palco, na minha cabecinha de menina rolavam mil idéias, enquanto no coração pulsavam sentimentos, desde doce alento ao medo e compaixão.
No final da ópera eu já estava dormindo, serenamente, em meio aquele turbilhão de sons e vozes que se alternavam do grave ao agudo, masculinas e femininas. Acompanhava hora sim hora não, a voz principal de alguém, quase sempre meio gordinho, que abria uma enorme boca para cantar. Para uma criança de pouco mais de sete anos, Aida de Verdi, La Traviata, do mesmo autor, ou La Boheme de Puccini, tinham uma linguagem muito estranha. Eu me afinava melhor com Madame Butterfly, que me arrancava lágrimas. Havia a linguagem do desconhecido. Para mim as imagens e situações ficavam pouco claras, mas de alguma forma real.
Sinto até hoje o leque perfumado da minha tia Esther que se abanava o tempo todo durante o espetáculo. Perfume de almíscar que me deixava com grande dificuldade de respirar. A abertura de Tristão e Isolda me enternece até hoje. Assim como Parcifal, todos dois de Wagner, um dos meus compositores prediletos.
As operetas eram cantadas em português, o que facilitava as coisas para mim. Tenho lembranças da Viúva Alegre com aquela trova que falava das mãos: “tua mão esta fria e ela tem um tremor. Ela não tremia sem o teu amor...” Tal leveza no canto me enternecia...
Ontem fui assistir Estação Carandiru de Hector Babenco, baseado nos textos de Dráuzio Varella. Imediatamente me reportei à época em que assistia aquelas grandes óperas. Fiquei imaginando se eu fosse entendia em música, como seria transpor aquela obra de arte para o palco explodindo em grande espetáculo! Mas ao mesmo tempo refleti sobre uma linguagem absolutamente emocional. Não sei que tipo de música e canto acompanharia cenas de tão grande desespero! Uma multidão de homens fora da lei, cuja pungente historia de vida, chegaria a arrebentar o som das consciências lúcidas que percebem onde se originam a marginalidade. E no meio de tal desumanização uma história de amor.
Lembrei-me de um artigo do Fausto Wolff no Pasquim 21. Falava dos 200 CIEPS fundados em 1986 no governo do Brizola. O talento de Niemeyer associado ao ideal de Darcy Ribeiro. As crianças saindo das ruas e se tornando cidadãs. Descobrindo suas identidades, seus direitos e deveres. Quantos daqueles homens do Carandiru que mofaram nas celas fétidas não se teriam salvado? Quantos Carandirus ainda vivem abaixo da linha de tolerância humana estão por ai, por este enorme país? Um verdadeiro exército!
Eu vi, em minha imaginação, centenas de meninos passando pelos prédios vazios do CIEPS
Dando-lhe vida! Hoje em dia, aquelas crianças que poderiam ter sido assistidas em horário integral, longe das ruas, estão com mais de vinte anos de idade. Toda uma geração! Muitos se tornaram traficantes perigosos, pois o modelo que tiveram durante a infância e juventude foram o dos Rambos do tráfico.
É de chorar assistir um espetáculo desses. Que ópera seria tão fiel ao drama que nós brasileiros vivemos no dia a dia, sujeitos que estamos a toda violência?
Carandiru teria virado um grande espetáculo! A tragédia, o triste resultado dos anos infelizes desses marginais, percorreria o mundo em múltiplos palcos, mostrando a miséria que um povo, sem instrução, sem educação de base, sem coisa nenhuma se torna. Denunciaria com lirismo a todos os governantes omissos à questão do social.
Apesar de que não frustraria os projetos dos mafiosos do tráfico, políticos, banqueiros e empresários sem coração. Afinal devemos lembrar que Hitler e seus comparsas adoravam as óperas, especialmente as de Wagner.
Profetizo que algum dia um artista da música, um compositor identificado com o social, ainda vá transformar Carandiru numa ópera. Utopia? Tudo é possível com tal riqueza de personagens. O País inteirinho vai virar palco para grande espetáculo onde também somos protagonistas. O Brasil vestido de Madame Butterfly, despedindo-se do filho mestiço e se matando por causa do “amor” americano.
Alguma coisa quase sem esperança.
Nota: Infelizmente a grande motivação para a realização da ópera continua...
2 comentários:
Ler seus textos sempre me faz bem...
Um beijo carinhoso..
Maria José,
você me deixou pensando.
Gosto muito de suas charges e do que escreve.
Sua colega de REBRA,
Eliane Accioly
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