A moça de
vinte e dois anos...
Maria J Fortuna
Tem uma moça
de vinte e dois anos brigando dentro de mim. Já lhe falei que ela é coisa
antiga, mas insiste em emergir da poeira do passado, para me dizer, com todas
as letras que, o que sou hoje, devo a ela. E que, em minhas veias, ainda corre
seu sangue. Com menos energia, mas é o mesmo conteúdo herdado e isso justifica
um pouco o que chamamos destino. Fala também que, por causa de suas
descobertas, brigas, conflitos, tristezas e pequenas alegrias, posso dizer que
me superei. Aí ela levanta o véu das águas do tempo para que eu veja, em todas
as conchas da praia, o espelho de mim mesma. Foi isso que aconteceu naquele dia
em que fui à praia e o mar recuou, imprimindo na areia minha velha imagem
molhada e trêmula. Sempre foi assim na ilha em que nasci. Eu, menina pensava:
as ondas não ligam pra nada a não ser para cumprir a sua sina, fazendo um
barulhão! Nem sabia que as grandes sombras projetadas na areia molhada eram
façanha do sol em nossos corpos. Eu me sentia enorme!
Mas a moça de
vinte e dois anos me falou que foi definitiva a coragem ao abraçar minha mãe e o suportar da benção negada do
meu pai, quando peguei minha pequena mala e sumi de casa. Tinha que correr
quando ainda havia tempo para fazer reparos na alma. E aprender com o que não
podia mais ser restaurado. Nem quero
falar, nem escrever o que deixei por lá. Aparentemente nada, mas em cada
coração a realidade da vida se amontoava e dizia: Não adianta! Tudo tem que
mudar para que haja sobrevivência! Então, naquele dia chuvoso meu corpo sentado
na cadeira do ônibus, via a paisagem passar e se transformar. Eu também passava
e me transformava...
Dali nem dá mais para contar os anos que
galopam em correria. Quando voltei não quis mergulhar nas ausências. Prossegui.
Mas é assim: com o tempo a gente começa a celebrar a paz que fica na alma
depois de desbravar florestas e de beber o sereno do cactos benditos, pessoas
boas que se encontra pelo caminho.
Pois é. Agora
estou aqui com esta saudade morena a percorrer fio a fio o tecido das
lembranças. Umas azuis, como nos dias em que acampei na Serra do Cipó, vermelho
quando descobri o amor carnal, verde quando perdida nas minhas esperanças,
cinza quando nada parecia dar certo, rosa quando os dias me indicavam sossego...
Daí pra frente. Talvez o preto, que o
coração não queria aceitar, tenha se misturado àquelas cores no paladar de uma
existência de luta salgada, mas sempre havia jeito de ficar aquarelada, mesmo
em cores mais escuras. Essa foi a salvação!
A moça de 22
anos me falou que, graças ao amor à Beleza, consegui, apesar de tudo, mergulhar no meu espaço interior, no templo da alma e descobrir as artes.
Afinal vaguei pelas salas de dança improvisando ao som de Vivaldi, pelos palcos amadores
sem coragem para tornar-me personagem de mim mesma, pelos ateliês buscando
expressar-me com traços e cores que se misturavam nas telas perdidas...
Aparentemente
nada deu certo. Então digo a essa moça, em seus vinte e dois anos, que na busca
itinerante das artes, acabei tornando-me poeta.
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