Maria J Fortuna
Segurou o
pincel com uma das mãos como se pegasse as mãos da própria alma. A outra estava
apoiada na prancheta, talvez para ajudar a conter a estranheza que vinha de
dentro. Diante da tela, um primeiro movimento de inspiração numa
pincelada azul. Enchendo-se de coragem havia dado o
primeiro passo rumo ao desconhecido.
Depois daquela primeira
pincelada, começou a longa aventura do coração. No azul, o branco se fizera
presente, projetando seus fantasmas no movimento das nuvens. Outras cores
começaram a nascer nos horizontes da tela. Apertando a bisnaga do
cinza, surgiram as nuances dos seus dias de bruma. O Cinza claro e
escuro em tons azulados se fez presente, sugerindo um céu de outono.
Mas pincelou alguns raios de amarelo e
laranja, para quebrar-lhe a nostalgia.
Sentiu o rosa daquele momento pedindo-lhe passagem. Tudo aquilo
era quase uma sinfonia! E assim a
tela foi se enchendo das cores do pôr- do-sol. Por fim, alguns
pássaros surgiram na ponta do pincel molhado de branco e voavam pelo espaço do
firmamento recém-criado. Sorriu na dúvida de que, sozinha, estava realizando
aquela viagem... Mas era verdade. Aquele era um ato tão solitário quanto o ato
de nascer, sozinha, na presença do mundo.
Mas aquele céu era mãe dos pássaros que não eram solitários, porque voavam
juntos na mesma desconhecida direção.
Contemplou sua obra e
percebeu quanto era longo o caminho para que beirasse a santa
loucura de Van Gogh, a transparência de Renoir, os movimentos dançantes
de Degas, a vida borbulhante no colorido de Toulouse Lautrec. Mas
sua rota teria que ser única e reconhecida, a cada passo da criação,
como eterno ensaio. E isso dependia tão somente dela, do seu
suor e do exercício da técnica adquirida com o passar dos anos.
Sabia que por diversas vezes erraria o caminho, pois o pincel não
conseguia expressar o que realmente vinha de dentro. O mais importante era ser
criança em espirito, capaz de transformar-se um dia em elefante, outro em
borboleta. E era disso que precisava. A angústia morava no pouco tempo que lhe
restava em adquirir a destreza necessária até que sua mão se tornasse leve
como pluma, e ela livre por sobre os trilhos.
Embora um sentimento de
incompletude tomasse conta do seu ser, não havia dúvida de que os cordões da
fantasia haviam-se desabotoados. Sabia que não era tão livre quanto aquelas aves
no pôr- do-sol recém-criado colorindo o céu com suas asas, mas aquilo era só um
princípio. E uma vez chegando a ele, não haveria retorno. Mesmo que a tela fosse
manchada com seus borrões impetuosos, na procura de uma estética na projeção
criada, sua alma viria sempre junto dali por diante. Foi o que
aconteceu. Ali estava a semente brotada pela transpiração, que revelava que
aquele olhar de coisas velhas fora vencido. A semente do novo
estava plantada e dali por diante teria que ter coragem e simplicidade.
A terra transpirou,
realizando-se em seu destino a partir daquela primeira semente. Foi naquele
dia em que a forma saiu da fôrma e as cores do coração.
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