terça-feira, 19 de março de 2013
Maria do Carmo Secco
Maria J Fortuna
Minha busca pelas artes me fez parar no Parque Lage, no Rio de Janeiro, onde funciona a Escola de Artes Visuais – EAV. Expliquei meu caso na Secretaria: -
- Quero ilustrar meus livros, falei.
– Ah! Vou encaminhá-la para Maria do Carmo, falou a mocinha sorridente.
Dia seguinte, estava eu ansiosa por conhecer a mestra e iniciar o aprendizado, quando avistei uma figura alta, franzina, com seus cabelos soltos, olhar ao mesmo tempo firme e doce e um sorriso inesquecível, apanhando sol antes da aula. Era minha futura mestra Maria do Carmo Secco, que me indagou o que eu ali buscava. Repeti o que havia dito na Secretaria. Então começou a jornada rumo a meu objetivo.
Eram bastantes alunos em sala. De várias idades. Desde o adolescente fazendo vestibular ao ancião. Começamos com riscos soltos no papel-jornal. Senti que estava presa há muitos anos num desenho medroso, com poucas linhas, muito infantil, que não me levava a nada. Antes de abrir o coração para as cores na pintura, eu precisava deixar que a mão se soltasse no desenho. Era a proposta da Mestra. E esta seria a base de tudo. Foram longas horas de trabalho, para quem, displicentemente, brincava em querer fazer arte sem muito esforço. Na verdade eu não havia deixado de lado essa paixão antiga, mas com a vida difícil que sempre levei para sobreviver, tinha que estabelecer prioridades. É bem mais fácil escrever um texto que passar horas desenhando, pintando ou esculpindo. Mas no correr das horas, dias e meses, havia naquela sala de aula no Parque Lage, uma alma forte em sua aparente fragilidade, mostrando o caminho. Alguém com amor e muita paciência para conduzir e dizer ao aluno que o erro faz parte, que o trabalho em arte exige paciência, e que vale sempre a pena recriar. Dizia também que no meu caso, a indefinição por um estilo era boa, pois abre um leque maior de possibilidades para buscar, pesquisar, experimentar. Foi assim que compreendi seus ensinamentos.
Desenhamos, entre outras coisas, cento e vinte árvores. A criatividade foi estimulada como se abrisse uma caixa de surpresas cheia de longos caracóis dourados, pós de borboleta, segredos recortados, colados e revelados. Arriscávamos lançar as sementes de uma nova figura a cada momento. Cobríamos papeis-jornais de arabescos dos mais variados, na viagem interior de cada um pela fantasia. Alguns descobriam estilo. Maria estava ali, proporcionando toda aquela liberdade de criar, vigilante para saber onde cada um chegaria e lembrando-nos as regras do desenho e das cores. Foi difícil para mim deixar o modelo referencial da árvore. Tão difícil quanto esquecer o marrom na pintura. Parece que suprimindo essa cor da terra, a gente fica no ar, insegura para se lançar em traços e pinceladas mais soltas que podem trazer pensamento e sentimento entrelaçados.
Outra característica da Mestra era a aceitação do aluno trançada no acolhimento. Ela era a única professora do Parque Lage que aceitava alunos especiais. Para todos a mesma dedicação. Com a notícia do seu afastamento por recomendação médica, fiquei pensando de como seria para nós e, particularmente para aqueles alunos, ficar sem aquela querida presença.
Neófita no mundo das artes plásticas, não ouso falar ou escrever sobre a obra de Maria do Carmo Secco. Posso apenas me encantar e deixar que críticos abalizados falem por mim. Ano passado, fui a uma de suas exposições e me perdi em suas retas, na harmonia de suas cores e na profundidade do movimento de suas telas. Além de ficar muito tempo parada, tentando perceber as colagens que tanto me intrigaram e mergulhar nas grandes telas com sua pintura. Finalmente, fiquei diante de uma de suas colagens que, não havia dúvida, expressava tudo o quanto eu queria dizer num poema escrito há alguns anos. Havia sintonia entre sua obra e aquele poema.
Sinta-se à vontade
sol que penetra nas fendas
da porta lacrada por meus sonhos
Hoje te dou bom dia!
De braços aberto
rompo a túnica do silêncio...
Quando sorrateira
a noite se arrastar
Trarei a donzela inocência
Com vestido bordado de raios de lua
levando a lua mãe consigo
E tu te casarás com ela
Li uma crítica interessante de autoria de Fernando Cocchiarale a respeito da obra de Maria do Carmo Secco, há algum tempo atrás, onde estava escrito que “a articulação entre desenho e pintura é não só uma decorrência lógica em seus trabalhos como também a questão central de sua obra”. Mais adiante ele escreve: “Percebe-se claramente o que é pintura e o que é desenho, que coexistem articulados sem que um suprima o outro. E prossegue adiante: (...)” Nas pinturas agora apresentadas, culmina um processo de transformação da obra” dessa imensa artista , com seu amor, talento e dedicação. Era o que sempre ela nos recomendava: trabalho e mais trabalho. Continuando, Cocchiarale acrescenta: “Na proposta anterior, cujo núcleo consistia na discussão da relação desenho/pintura, a artista muitas vezes desenhava sobre tela. Agora aparece um caminho pictórico que se tangenciam na busca de um contato questionador o que claramente a afasta dessa discussão. Espaços possíveis – reais “
Naquela última exposição de 2012, ela mostrou a síntese do seu trabalho em longa jornada. Fruto de escolha corajosa ao se decidir pelas artes plásticas. Guerreira dos anos 60, quando participou do movimento modernista Tropicália, que influenciou as artes plásticas naquela época. Passado dez anos, utilizando o desenho como meio de expressão, retorna em 1980 à pintura interrompida desde o final dos anos 60. Breve teremos uma exposição retrospectiva de suas obras.
Quando pensei em escrever esta crônica, partilhei meu desejo de expressar reconhecimento e gratidão pelo tanto que recebemos. Alguns dos seus ex alunos com quem tenho ainda contato, mostraram interesse e a ideia foi alvo de grande aprovação. E todos reconhecem o privilégio de terem sido discípulos desta Mestra tão especial em respeito, carinho e competência.
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