sexta-feira, 31 de outubro de 2008

A culpa original




Maria J Fortuna



Angústia não devia ser coisa de criança. No entanto a menina se esforçava para brincar de casinha com a irmã mais velha, mas tinha o coraçãozinho oprimido por ela - a angústia, dentro do peito.
Tudo se deu quando aos quatro anos foi nos braços do irmão mais velho para o cine Roxy. Não era mais de colo, mas o irmão queria andar depressa para não perder a ultima sessão do filme que estava passando naquela Sexta Feita Santa e seus passinhos ainda eram muito curtos.
A criança observava o belo ator do filme que fazia o papel de Jesus. Seguia atentamente os movimentos daquele homem sublime que falava manso e abria os braços para as criancinhas. Todo mundo dizia que ele estava no céu. Mas estava ali, falando, sorrindo, caminhando com seus amigos... Cheia de encantamento pensou: disseram isto porque não vieram ao cinema vê-lo. Cristo não estava na Missa, escondido naquela hóstia branquinha, estava ali!
De repente o clima do filme mudou. Jesus acabava de ser preso. Foi açoitado e caia com uma cruz enorme nos ombros... Por que aqueles homens maus faziam aquilo com ele? Crispou as mãozinhas e apertou com força a perna do irmão que a havia sentado em seu colo e tomada de pavor pediu a ele para sair dali. Ele se recusou. Começou com choro baixinho, abafado, que foi aumentando de volume à medida que aquela dor, que não conhecia, apertava-lhe o peito. Por fim estava esgoelando.
- Quero ir embora! Quero ir embora!
O irmão teve que abandonar o cinema, rancoroso.
Durante muito tempo a menina parava de repente, absorta em seus pensamentos. Coisa que não é própria de criança da sua idade. Passou comer apenas arroz com manteiga e fazia xixi na rede onde dormia. Sempre havia uma bacia de alumínio embaixo da rede. O que lhe dava, ao despertar, um sentimento de vergonha. Mas era inútil, não havia falatório que a fizesse parar.
Um dia aproveitou a ausência das quatro tias solteiras e arrancou, com as mãozinhas nervosas, quatro Cristos pregados nas cruzes de madeira. Era costume usar crucifixo no espelho da cama. Levou os quatro para trás da porta onde estavam guardados alguns dos seus brinquedos, colocou-os no berço da boneca cobrindo-os com um trapo amarelo, que sua mãe havia-lhe dado para brincar. Ali eles não sofreriam.
As tias acharam graça... Imaginem que criança travessa, mas boa de coração. Isto devia ter sido um milagre de Cristo, imaginou a menina. Havia se safado do castigo.
Não queria contar pra ninguém o que lhe afligia. Falar daquele assunto esquentava sua cabecinha de cachos loiros. Mas criou coragem e, timidamente, indagou a sua mãe:
- Por que mataram Jesus? Por que maltrataram ele?
- Morreu por nossos pecados, filha
- Pecado meu?
- De todos nós... respondeu-lhe a mãe com voz carinhosa.
Mas ela não estava naquele filme. Eles vestiam roupas esquisitas!... Não se viu lá. Como se tivesse um passarinho preso dentro do peito, parecia sufocar. Não queria reconhecer, mas quem disse foi mãe e mãe não mente. E falava pra si mesma:
- Também matei Jesus!
Era difícil dormir, porque no silêncio da noite escura no fundo da rede, a angústia crescia e apareciam fantasmas de gente má para puní-la. Pior: se ele, o crucificado, aparecesse e, apesar do seu olhar doce lhe dissesse: “- Viu o que você me fez? A tia que foi freira dizia isto: “- É só chamar e ele vem.” Sabia que Jesus era bom passou a ter medo dele.
Na escuridão do quarto, de bruços, esmagava a mão esquerda embaixo da coxa e com a direita empurrava a pálpebra do olho direito que podia perder o controle e abrir. Justo o olho que enxergava mais. O olho esquerdo não era problema: estava esmagado contra a lona da rede.
Ficava ali, em agonia, sem mudar de posição com o suor empapando sua camisola de cambraia fina.
Podia ter sido tão diferente, pensava, deviam ter deixado Jesus em paz...




2 comentários:

Dalva Agne Lynch disse...

belíssimo texto - como todos os demais, porque fui lendo até o fim da página! O coração que escreveu essas palavras - todas elas - deve ser tão grande quanto o Universo, e muito, muito próximo a tudo o que é sagrado.
Com muito carinho e respeito,
Dalva Agne Lynch
www.dalvalynch.net

Artes e artes disse...

Minha amiga Rosane, escritora, pesquisadora, que mora na Suíça, pediu-me para postar este comentário:

Prezada Maria,
admiro sua perseverança e consequentemente, "faça chuva ou faça sol", voce nos brinda com uma linda cronica ou uma crítica charge.
Muito obrigada!
Abraços,
rosane zanini

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