domingo, 19 de outubro de 2008

A peruca cor de rosa




Maria J Fortuna


Todos os dias abria os olhos com aquela sensação estranha... Por causa disso tinha medo ao acordar. Por causa daquela impressão de abismo. Noite escura sem sonhos era sua velha conhecida. Vasculhou dentro de si mesma o motivo para aquilo estar acontecendo... Iria parar de tomar aqueles comprimidos assim que se sentisse melhor. Apesar de que, com eles, pelo menos conseguia debelar aquela insônia maldita. Mas o medo continuava mordiscando suas entranhas. Se não dormia ocupava a mente com pensamentos melancólicos e rezava para a chegada do sol; se dormia tinha medo de acordar de repente com aquela sensação de abismo.
Melhor coisa era pensar em algo agradável, que tivesse sido tão bom quanto o primeiro aperto de mão de um amor recém conquistado. Então mergulhou em lembranças adormecidas em seu coração. Melhor coisa para espantar o medo é buscar prazer. Gosto e aroma do prazer distraem a mente dos maus espíritos... Um cheiro agridoce penetrou-lhe as narinas enquanto fechava os olhos e se entregava as lembranças sagradamente profanas. Uma em particular recorrente...
Na década de vinte sofrera um eczema agudo no couro cabeludo. Seus cabelos caiam em grande quantidade, chegando ao ponto de deixá-la em calvice. Foram momentos angustiantes, de grande sofrimento ao contemplar sua jovem imagem, aos dezoito anos no espelho do velho casarão.
A mãe havia-lhe comprado uma peruca, mas esta não era suficiente para cobrir-lhe a vergonha de estar desprovida de suas madeixas castanhas. Os dias pareciam-lhe pesados e vivia como que encaramujada, sentindo a vida meia que insossa. Até o dia em que foi convidada para um baile de carnaval no clube da cidade. No inicio recusou o convite, mas o coração materno estendeu-lhe uma peruca cor de rosa. Ela iria de dama antiga!
No baile colorido, pleno de discretos prazeres, conheceu um senhor bem afeiçoado, elegante, simpático. Bem mais velho que ela sim, mas seu charme chamava atenção das moças que trocavam olhares de aprovação e sorrisos de cumplicidade.
Não demorou muito para que um sentisse a presença do outro com grande intensidade! Em meio aos foliões enfeitados de sonhos, os dois se tocaram nas mãos e depois nos lábios. Não havia palavras suficientes para traduzir a alegria daquele encontro! Havia descoberto ali a fonte de prazeres que seu corpo escondia. Todo seu ser dava pulos como criança assanhada e pulsava em ritmo até então nunca experimentado!

A evocação daquelas lembranças deixava-a perdida em pensamentos prazerosos... Uma onda de calor a fez ligar aquele momento ao agora, pelas asas invisíveis do tempo. Abraçou o travesseiro, como o fazia com seus sonhos mais calorosos, afastando o lençol que lhe cobria os pés. Não havia lugar para melancolia ou medo, naquele instante. Importava aquela doce lembrança: baile de carnaval com peruca dor de rosa... Revirou-se na cama com sorriso nos lábios ressecados pelo remédio e voltou a sonhar com o olhar passeando pelas sancas no teto do quarto.

Quando findou o baile a irmã mais velha a levou para casa, que não ficava longe dali. Os comentários se sucederam desde então. Quem seria aquele homem? Dizem ser um viúvo que vive na Suíça. Na verdade não era conhecido da sociedade local, mas aparentado de uma família cheia de bens e tradição. E ele foi gostar justo dela que sabia exatamente a hora em que ele passava pela sua rua. Então corria para o quarto, pegava a peruca rosada e ia para a janela esperá-lo. Ele passava com sorriso nos lábios, ar enigmático, olhando para a janela quando tirava o chapéu em saudação. A esperança havia criados raízes no coração da mocinha e as horas eram difíceis até que o fato se repetisse.
Um dia, brincando com as irmãs, deixou-se mostrar na janela sem a bela peruca cor de rosa... Pior, sem nenhum artefato que lhe cobrisse a calvície. Justo na hora em que o pretendente passava pelo local.

Tal lembrança a deixava tensa e ela crispou a mão esquerda, amassando o lençol que cobria-lhe o corpo senil. Sentou-se na cama com dificuldade, pegou o copo na mesa de cabeceira com as mãos tremulas e bebeu a água que havia colocado ali, de véspera.
Nunca mais, a figura de seus desejos e sonhos, voltou a percorrer as calçadas de sua rua, tirando o chapéu com reverência, como se tivesse em frente a uma deusa...
São tão breves os momentos das lembranças que trazem prazer, pensou.

Novamente envolta por estranha sensação de insegurança, levantou-se cambaleante, da velha cama de casal, para fazer o café.

Um comentário:

MJFortuna disse...

Cometário da Clevane Pessoa, por email.

Olá!

Venho de ler seu conto encantador.Gosto muito dessas histórias que escreve, onde as questões de gênero são tão fortes - a alma feminina se desnuda...
Para você, esse poemeto, brotado após a leitura:
Lembranças

As reminiscências,
para as mulheres,
são mesmo essenciais:
volta à presença tudo aquilo
que não voltaria mais,
e o passado torna-se presente, lições são tiradas,
saudades trabalhadas,
até as sensações e emoções
da alma um dia jovem,
desenham-se à nossa frente, imemoriais...

Já a charge, o blog, pelo seu pp sitema, diminuiu muito, não consigo ler os balões.

Clevane Pessoa

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