sábado, 28 de fevereiro de 2009

Sobre o perdão



Maria J Fortuna

Quando no dia nove de novembro de 2004 viajei para S. Paulo, sabia que iria encarar uma situação muito difícil: uma amiga estava perdendo o marido para o câncer, mas não conseguia perdoá-lo. Aquela mágoa estava ali há tanto tempo como fóssil enrustido num lado pedra do coração, contrastando com a fragilidade do seu corpo.
O cultivo daquele ódio foi acontecendo na rotina do dia a dia, onde os dois se digladiavam proferindo palavras cáusticas para atingir um ao outro. Era uma luta inglória e sem fim... Resolveram então morar em apartamentos separados. Mas pelo fato de serem franceses, sem nenhum membro da família próximo no Brasil, falavam-se ao telefone todos os dias com hora marcada. Havia esta interdependência apesar de tudo. Tinham em comum a língua e a dificuldade de se relacionar em paz.
Como eu iria entrar em cena diante de um desamor tão antigo com tão pouca possibilidade de ajudá-la? Com que autoridade lhe falaria que o perdão tornar-se necessário para uma vida saudável? Foram mais de quarenta anos cozinhando ódio. O tempo que tudo lambe, nem sempre dá conta de apagar as absurdas lembranças que vagueiam como fantasmas vagabundos em nossos pensamentos, paralisando nosso processo de crescimento. Somos, afinal, crianças em eterno processo de crescimento. Ah! Quantas lágrimas derramadas dentro dos corações... Quem dera escorressem pela alma para dar-lhe o frescor da liberdade... Represadas, viram uma lama absurda! E quem de nós não tem a vivência dessa dificuldade de perdoar?
“A liberdade é o ar que respiramos. Só ela constrói pontes em que o amor possa fluir”, diz Jean Yves Leloup,
Liberdade sem perdão não existe, pensei durante meu trajeto solitário dentro do onibus e dentro de mim mesma. Ponderei: o tempo não espera... O que ocorre com meus semelhantes tem sempre a haver conosco. Mas se não houver o exercício do perdão de nós mesmos nunca vomitaremos o veneno da mágoa antes que, como chicletes mascado com ódio, venha a grudar nas paredes de nossas almas. Fica difícil caminhar assim. Seu peso é incalculável! Difícil despetalar amores encima de quem as causou! Mas “A única falta que Deus não pode nos perdoar é o não perdão a nós mesmos.” Leloup adverte. No entanto este perdão a nós mesmos é tão raro e difícil como conseguir uma pérola no fundo do oceano. E como é difícil vivenciar os fracassos de nossa vida afetiva! Vemos no outro a nossa própria face caricaturada, cheia de rabiscos, mal delineada, às vezes meio apagada, com traços fugidios ou borrões que não nos demos conta. Há que refletir sobre isto.
Minha amiga francesa tinha como que fendas profundas e dolorosas no coração. Cresceu vivenciando desafeto da mãe, casou-se com um homem preconceituoso, de caráter nada fácil, e pôs nesta vida uma filha que se foi para USA e nunca mais deu noticias. Por sua vez escondia sua insegurança atrás do orgulho de pessoa bem nascida, culta, rica, mas ironicamente infeliz. Muitas vezes ouvi sua queixa de abandono. A única coisa que eu podia dizer-lhe, por experiência própria, é que não é necessário obrigar-se a conviver com aquele que perdoamos. Mas se não o perdoarmos ele estará sempre presente e o carregaremos por toda nossa tão frágil vida.
Em 25 de novembro de 2005, eu estava novamente na estrada, com o mesmo sentimento de impotência diante do novo fato: minha amiga havia adquirido câncer. Alguma coisa maior do que seus pensamentos obsessivos poderiam ajudá-la a reconhecer sua tão ressentida criança interior.
Estou certa que só algo bem maior do que nós, o Self de cada um - nosso Cristo interno, é capaz de perdoar. O resultado será a reconquista da liberdade para uma respiração de renascimento. Eu, menino diante do Criador, pequeno e nu, sem nenhuma vestimenta de raça, credo ou cultura. Em estado de pureza absoluta!
Até hoje não sei o que se passou no coração querida amiga francesa. Ela se foi silenciosamente. Pediu que não contassem nada a filha. Uma amiga presenciou seu último momento consciente. Diz ela que tudo se passou na mais absoluta solidão e paz. O que me faz supor que tenha vivenciado o sentimento do perdão.

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